CARTILHA




Lembro de um homossexual de minha adolescência. Não lembro de tê-lo hostilizado. Nem de tê-lo apoiado ou protegido. Apenas de que o desconforto de certa forma o tornava arredio, desconfiado, introspectivo.

 Lembro também das inúmeras brincadeiras que o ridicularizavam por seus trejeitos efeminados, nenhuma, é claro, feita à sua frente. Lembro-me dos mais velhos, querendo parecer descolados, imitando a munheca caída e a voz aflautada, revirando os olhinhos quando se via o rapaz que era um gato. Lembro perfeitamente do andar rebolativo de deboche, a camisa suspensa com um nó acima do umbigo, a calça jeans diminuída ressaltando o contorno glúteo. Os mímicos se esmeravam, acentuando uma caricatura grotesca de algo que é homem e mulher, mas não consegue ser nenhum dos dois. Entretanto, o rapaz homossexual de minha adolescência não se parecia em nada com aquilo que imitavam.

Só me lembro dele porque, apaixonado por um amigo comum, cometeu o erro de lhe enviar uma carta. Cometeu o erro de apreciá-lo abertamente pelos corredores. Cometeu o erro de abordá-lo durante recreio, de declarar-se para ele no pátio, de chorar por ter sido desprezado. Cometeu o erro de fazer tudo isso diante de boçais. A maioria de nós.

Era um rapaz bonito. Nada denunciava nele o amor por iguais. Conversávamos algumas vezes, porque era também muito inteligente. Talvez mais inteligente do que nós.

Era capaz de perceber nossos defeitos e pontos fracos, mas ao contrário de nós, não se valia deles para cometer o crime que nós cometíamos. Eu não cometia crime algum, apenas não me envolvia, porque achava que não era problema meu. Esqueci seu nome como esqueci outras coisas sobre aquele tempo.

O pai dele também tinha problemas. Visitei uma ou duas vezes sua casa. Fazíamos trabalhos escolares juntos. Duas ou três vezes o pai chamou-me às falas e perguntou: você é namorado do meu filho? Diante da negativa, via-se o alívio. Procurava catequizar-me: filho faz ele gostar da fruta, faz. Eu, sem coragem, porque não tinha provado da fruta. Sequer tinha beijado uma garota. Disso lembro bem: as garotas tinham dificuldade para me entender. E depois que passei a andar com ele, olhavam-me desconfiadas...

As meninas daquela época também eram imbecis. Eu também era um. Esforçava-me para sair disso. Ele percebia a minha tentativa de ser diferente. Nosso amigo em comum, assediado por ele, não pareceu zangado. Mas a carta em letra muito bonita passou de mão em mão no colégio. Dizia coisas profundas. Eu não me lembro quais eram essas coisas, mas tenho guardada comigo a sençação de que diziam coisas importantes e bonitas.

As meninas lamentavam muito por ele ter assediado um garoto – tão bonito... e o suspiro completava a entonação - o lamento pelo desperdício. As professoras não se cansavam de elogiá-lo. Sujeito aplicado, realizava as tarefas em silêncio. Nós parecíamos símios, sem a etiqueta da jaula. Ele seguia sempre de cabeça baixa, levantando-a apenas quando cruzava o portão da saída.

Os meninos, parte do caminho, exerciam a crueldade – aprendida de pai para filho.  Crueldade boçal cometida contra o mais fraco. Era o aprendizado de ser homem. Bater em marica, espancar mulher, coçar os culhões, cuspir grosso. Um cartilha estudada com afinco por todos nós, mais do que a tabuada. Embora de culhões pequenos, não me afastava muito da maioria dos outros guris.

Só não me agradava a perseguição contra os maricas da escola. Das brincadeiras, confesso, eu ria. Mas todo mundo ria. Não me lembro dele, no último ano. Não o vi mais. Ele passou. Eu levei bomba. Ele iria para o secundário. Nosso amigo em comum me deu a carta para ler e guardar, se quisesse. Eu li e reli tantas vezes que o papel se rasgou. Era mesmo bonito o que estava escrito ali. Senti inveja. Nunca mereceria uma pureza tão grande como a de que foi digna o meu colega.

Dobrei e levei comigo a cartinha – perfumada feito os papéis-de-carta que as meninas colecionavam. Ele era um rapaz bonito. Agora, perdido entre os cacarecos de minha lembrança, cobra-me alguma coisa que não sei o que é. Cobra-me uma coisa de que apenas desconfio.

Comentários

Unknown disse…
Este belo texto me levou também para a minha escola. Também participei do coro dos debochados. Queria saber onde estão aqueles que também ajudei a segregar ativamente ou covardemente.

Postagens mais visitadas deste blog

Iberê

EXERCÍCIO

O caso Alexandre Soares Silva