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Mostrando postagens de maio, 2008

Kipling e a Serpente

A estação de trem repleta de indianos. Rudyard Kipling não mostra nenhum desconforto trajando o terno de casimira inglesa. Calça um par lustroso de sapatos de laca, a mala de papelão na mão direita, o bilhete da passagem examinado pelos olhos inquietos atrás do óculos. Deixaria Bombaim para se aventurar na casa da floresta para escrever um novo livro. Não tinha certeza sobre o que escreveria, mas isso não o incomodava, pelo contrário, sentia-se confortável. Era a primeira vez que não estabelecia regra nenhuma em uma viagem, não tivera tempo para esboçar um plano – isto contrariava seu temperamento metódico, mas prometeu a si mesmo que seria a última vez que uma coisa assim ocorreria. Bandhavgah, chamava o bilheteiro. A multidão subia ao trem que apitava dando o sinal da partida. A casa era modesta, pertencia a um funcionário do marajá, que vez por outra tomava o seu caminho com a família para descansar do serviço burocrático dos palácios. Tinha três quartos na parte superior, uma grand

O Embrulho

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Ângelo olhou o céu sem nuvens. A claridade atravessava os galhos das árvores, os pássaros com uma plumagem tão bonita banhavam-se no lago do parque. O calor incentivava ao exercício físico ao ar livre. Muitas pessoas se exercitavam caminhando ou pedalando suas bicicletas. Outras levavam para passear seus filhos, incentivando para que aproveitassem a manhã de sol tão azul rara naquela época do ano. Levava consigo um embrulho. Sentou-se em um dos muitos bancos espalhados pelo parque para descansar, ressentia-se do peso. Havia caminhado bastante pela cidade até parar naquela área de recreação. Não a tinha definido como seu ponto de chegada. As pernas o levaram para lá como por vontade própria, talvez precisasse ficar ao livre, libertando o pensamento da ação da noite anterior. Toda vez que lhe vinha à lembrança seu rosto contraía-se como se em algum lugar a vida doesse e ele temesse encontrá-la. As meninas andavam em shorts pequenos, levando seus cães pela coleira. Outras brincavam de peg

Revista Miopia - Auto - Entrevista

Como surge a sua ficção? Minha ficção cresce aos trancos. O intervalo de trabalho é o patrocinador desta minha ficção,apressada pelos compromissos bancários, administrativos e pessoais. Quando este intervalo surge se acendem as mil lâmpadas da imaginação, encharcando meu cérebro de luzes, me obrigando a registrá-las, sabendo que não restará mais que dois minutos entre a volta do patrão do almoço e a execução primorosa daquilo que se escreve. Desta forma minha ficção nasce dessa urgência. Não há um outro caminho, porque absorvido por tantos outros afazeres, resta muito pouco ao escritor, porque este ofício, apesar de almejado, não paga as minhas contas.É triste saber-se dividido entre o prato vazio e a folha em branco. E qualquer um dos dois jejuns me causa sofrimento e privação. Na iminência de tê-los ambos destruídos – porque amanhã se poderá descobrir que tudo não passou de um equivoco.

Para Zélia e Jorge Amado

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O redemoinho subia, levantando do chão: poeira, folhas e restos de papéis. Chegava à altura de uma pessoa que tivesse seus um metro e setenta, percorria o caminho do jardim como se caminhasse para se aquietar junto do tronco grosso de uma jaqueira frondosa, perto de um banco decorado com caquinhos de azulejos coloridos. Era como se sentasse à sombra da árvore, descansando do percurso. Logo desaparecia, levando consigo as impressões do ambiente, para ressurgir no dia seguinte com o mesmo comportamento. - Jorge é você – Zélia sussurrava. A copa das árvores se mexia. - Jorge não fique de brincadeiras – ralhava ela – apareça! Os meninos estão dormindo. Pedia Zélia. - Sabe o que eu soube? Vou lhe dar a notícia em primeira mão: eu também estou indo. E quero segurar em suas mãos para fazer a travessia. Vê pára quieto e me escuta seu pé de vento danado. Zélia notou o redemoinho parar. As flores recendiam um cheiro adocicado. Então, detrás da jaqueira, saí Jorge como se estivesse ali o tempo to

Capitu e Lima Barreto - Um Conto Sobre A Inveja

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Naquela hora da manhã já era possível encontrá-lo no Bar Papagaio, embora costumasse tomar cedo o bonde para a cidade. O passeio à rua do Ouvidor era um hábito. Antes tornava obrigatória à passagem no bar para uma talagada de parati. Abria o ânimo, enchia-lhe de coragem para a visita que pensava em realizar, apesar de contrariado, ao seu rival, porque não gostava nada da idéia de encontrá-lo. Ajeitou como pode as roupas amarfanhadas. Não saberia como explicar o estado lamentável de seu traje, mas não se importaria com isso. Às favas com a opinião alheia, bastava-se a si mesmo e não pretendia ir à casa de um consultor de moda para pedir-lhe sua impressão sobre sua maneira de vestir. A gravata não encontrava lugar, apertada como estava ao seu pescoço. Era como uma serpente que o estrangulasse. Castro o novo proprietário do bar, estranhou um bocado a farda àquela hora da manhã, pensou que Afonso estava metido em uma embrulhada como as muitas em que se costumava envolver e estivesse promet

Meu Encontro com Marques Rebelo

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Neste dia resolvi tomar o trem para a Central do Brasil. E adiantei à minha mulher que não me aguardasse para o jantar, porque o expediente de meu trabalho iria até tarde. O fechamento do jornal sempre se estendia madrugada adentro, com muita discussão, desgastando todo homem santo que ali pisasse. O remédio era esticar depois do trabalho até o bar do outro lado da rua, tomar uma ou duas talagadas e depois seguir o rumo de casa. Era isto o que me acontecia mais ou menos todos os dias. A novidade ficava por conta de uma briga ou outra por causa de futebol entre os fundamentalistas dos clubes do Fluminense e do Flamengo, sempre por causa da escalação do time, dos títulos do campeonato carioca que detinham. Ou um desentendimento de casal que ocorria com calorosas discussões sobre obrigações conjugais – a flexibilidade do sentimento masculino irrita a suscetibilidade feminina que não concebe como um homem pode querer sexo com uma mulher a quem não ama. Tudo isso me passava pela cabeça pela

Acrósticos Para Jorge Amado e Aline Moraes

Para Jorge Amado G osto da tua pele branca A pétala desfolhada B rinco da madrugada R iso do alvorecer. I nstantes de amor E nada L eve na madrugada A ntes deste amor morrer. Para Aline Moraes A tua boca escreve L eve o mistério I ndelével N a minha carne E arde.

Carta ao Presidente da República

Antes que algum acessor engraçadinho divulgue na internet esta carta como anônima, faço esta postagem para resguardá-la deste incerto destino virtual. No auge de uma indignação, procurei escrevê-la, com seus erros e acertos. A minha convicção ainda é inabalável: um dia este país vai cumprir seu ideal e não será apenas a velha colônia de tantos outros Portugais. Ilustríssimo Senhor Presidente, Sou brasileiro, contudo não consigo exercer minha cidadania. Apesar de toda a propaganda do governo sobre a democratização das oportunidades, todo o alardeamento desse crescimento que o país sofre, não consigo acessar os meus direitos básicos. Entre estes direitos básicos, aquele que me preocupa mais é o da moradia. Isso não significa que sou um descrente no governo, que sou omisso com minhas obrigações a esse país, nada disso. Tenho tentado ser um cidadão exemplar. Isto quando o país permite e minha cor não impede. Este fato é outro que me incomoda bastante, apesar da existência de um ministério

Ainda Uma História das Ruas

A menina tinha o gosto do biscoito e do refrigerante na boca quando adormeceu. A embalagem escondida embaixo do travesseiro prometia sonhos com terras distantes, fadas, e, seres imaginários. O pequeno vestidinho esfarrapado se transformava em um traje de baile. Ela descia de uma carruagem, conduzida por sua boneca agora com as bochechas coradas; tão limpa que doía nos olhos a brancura de suas roupas. No salão rodopiavam duendes acompanhados por ondinas; anões malabaristas carregados por elefantes em miniatura em suas proezas circenses; fadas que mudavam por completo a cor do cabelo das convidadas como cabeleireira encantadas, estilistas prontas para modificar todo o visual apenas com um piscar de olhos, ou, um bater de asas. Todo o reino era uma felicidade, exceto por certa tensão percebida pela menina em um mensageiro. Tinha aspecto nanico, rugas de preocupação sinalizam em sua testa a importância da notícia que tinha para dar. A menina se aproximou dele para conversar. Por que estav

Ainda Uma História das Ruas

Sentiu a umidade no cobertor. Essa menina deve ter mijado. Embrutecido pelo cansaço, resolveu não fazer caso naquela noite. Dormiria. Quando amanhecesse, se levantaria para se banhar no chafariz do parque. Lavando as roupas, ralhando com a filha. À noite estava frio demais para se perder tempo com brigas. Não notou que a mulher havia se levantado, e, caso a percepção lhe ocorresse, não descartaria a idéia que tinha ido ao tapume se aliviar. Porque tinha a bexiga solta, custava a pegar no sono. Quando adormeceu sonhou o sonho de todas as noites. E não seria diferente daquela vez. Nadava no antigo rio da infância, junto dos colegas de bairro. A felicidade daquele tempo sempre retornava como algo terno, envolvente. Era um sonho sem sobressaltos, ligeiro como nuvens fugidias em um céu de verão. Nesta noite, porém, percebeu uma diferença, porque não costumava ter pesadelos. O corpo se agitava. Debatia-se como se dormisse sobre uma cama de pregos. Agora ele corria por uma floresta, caía de u

Outra História das Ruas

A mãe não sabia. Desconfiada enfileirou um monte de perguntas. A menina comia depressa o pacote de bolachas. O rosto sujo, a camisa respingada do refrigerante. A cantoria ruidosa dos parabéns para você enchendo os ouvidos dos passantes. Alguns jogavam alguns trocados sobre o papelão onde estavam deitados. O pai divertia-se com as estripulias, brincando de aviãozinho com a menina nos braços. A mãe entre alegre e ressabiada. Longe, os seguranças do mercado conversavam. Não valia a pena, mas o proprietário exigia uma satisfação. Aquilo era um roubo, flagrado pelas câmeras da segurança. Como não intervieram? Esses vagabundos, não se pode vacilar um instante com eles – arrematou o proprietário do mercado - Alguém pagará por isso. Um dos seguranças foi chamado duramente atenção: que não se descuidasse novamente daquela forma, senão estaria no olho da rua. A mãe não gostava nada da movimentação da segurança do mercado. Pediu para o pai lhe contar a verdade. Você não roubou isso? Roubou? Ele

Uma História das Ruas

Ela fixou meus olhos. O preço estava marcado sobre o pacote de biscoitos, consultei minhas economias para ver se bastavam para comprá-lo, constatei que não era o suficiente. Ela tinha fome. E não tinha culpa. Olhei em volta da gôndola, procurando pelos seguranças do supermercado, não os avistei. Amanhã seria aniversário dela, não teria festa, nem bolo. Aquilo me doeu bastante. Ela chupava o pequeno dedo magro. Os olhos cresciam vendo a ilustração da embalagem como se estivesse diante de um desenho animado. Procurei enganá-la, oferecendo um biscoito mais barato, vendido logo ali, na esquina, para sair do mercado logo, antes que me decidisse por uma besteira. “Amanhã é meu aniversário, compra pai”. A seção estava vazia. Eu não sabia o que fazer; ela me esticou os olhos compridos, e, para falar a verdade, o pai dela era outro cara com quem a mãe tinha transado; mas, era como se eu fosse mesmo o pai dela. Portanto, não tive escolha. Escondi o pacote de biscoitos no casaco largo que vestia