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Mostrando postagens de novembro, 2014

Coxo à Eternidade?

Meu avô tinha uma filosofia curiosa: o homem nascia sem alma. E a conquistava paulatinamente através da depuração de seus pensamentos e ações. Portanto, o homem esvaziado preenchia a si mesmo com a elevação de seus atos, mirando um horizonte além de sua própria consciência, visando – ao morrer – ter completado o trabalho de restaurar-se para apresentar-se ao Criador - por inteiro, sem que nada lhe falte. A percepção de meu avô me marcou porque a humanização não era um processo desligado dos outros, ensimesmado, sem outra finalidade que não o próprio homem. Em seu método, ela deveria existir para o Outro e resultava da Travessia. Dela se desprenderia para integrar a alma que se formava. A concepção inusitada não encontrava respaldo filosófico em nenhuma corrente conhecida. Parecia saída, originariamente, das entranhas de meu avô materno. Aliás, uma outra vez aqui se revela uma característica do pensamento por ele elaborado: o homem pensava por inteiro. O pensamento não era u

Superestimação infinita

Infinite Jest, de David Foster Wallace, traduzido em Portugal como A Piada Infinita (Quetzal), é um catatau. O burburinho em torno do escritor obrigou-me – leitor compulsivo – a comprá-lo no mercado europeu para leitura. No Brasil, a tradução ficou a cargo de Caetano Galindo - tradutor de Ulisses, de James Joyce -, publicado pela editora Companhia das Letras por onde também sairá o livro de Wallace. Embora as incorreções da tradução portuguesa, o livro pode ser lido com tropeços. A inteligência nacional, principalmente a jovem, incensava a genialidade do escritor corroborada por inúmeros outros intelectuais que conviveram com o Wallace. O gesto do suicídio parece ter acentuado o traço sobre sua vanguarda,porque enforcar-se ou atirar-se de uma janela ou inalar gás ou qualquer coisa do gênero parece garantir ao autor um lugar no panteão da literatura moderna – mesmo aos mais modestos. David Foster Wallace não é modesto. A pretensão e a vaidade o acompanham através do calhamaço de mil e

# 3 A Ciclista / ramal Central – Santa Cruz

A bicicleta aproximou-se do cruzamento. A garupa ocupada por apetrecho de segurança para criança, embora nele nenhuma fosse transportada. A mulher, com aparência de quarentona, tinha o corpo em forma. Uma blusa amarela leve e um short de lycra cinza mostravam os cuidados dispensados à manutenção física da ciclista. O sinal fechado obrigava a parada. Talvez não tivesse a disposição dos dias anteriores em que célere atravessaria a fileira de automóveis parados no trânsito congestionado da avenida. Tirou os pés dos pedais, estendendo as pernas para auxiliar o descanso durante o instante do sinal. Ela parecia alheia quando movimentou os quadris , friccionando-se no selim como ajeitando-se na montaria. Entretanto, parecia ter perdido a comunicação que lhe parecera satisfatória, repetindo inúmeras vezes – no breve período – a operação sem constrangimento. Os cabelos, embora não longos, encobriam parte do rosto da ciclista. Talvez estivesse divertida pelo escândalo; talvez não passas

# 2 A Aluna / ramal Central- Santa Cruz (série retratos do trem)

Uma aluna, a das pernas, acostumada a vir desprotegida, fez a alegria dos marmanjos: abriu-se, acintosamente, em ipsilon; o batom vermelho e a mecha de cabelo caída sobre os óculos, sem chance de defesa do espectador hipnotizado pelas sutis paisagens esboçadas pela puberdade. Levantei-me e caminhei para longe de seu pouso antes que ela me convidasse para um deslize ótico. 11/10/2014

#1 Mocinha do ramal Central – Santa Cruz (série retratos do trem)

Os incômodos corporais, um artificio. O vestidinho vermelho e curto com pequenos corações estampados mostram uma predisposição amorosa. Um casaquinho negro sobre os ombros, óculos escuros para disfarce dos olhos... Distraída, movimenta-se. Desnuda as coxas e todo o interior da roupa. Desvio os olhos. Ela não aceita ser retirada do centro das atenções. Estica as pernas, brinca com os pés. E o vestido, antes comportado, sobe uns centímetros aflitivos. Simula tremor, a mocinha apreensiva: responsável por um destino qualquer ignorado. Ritmicamente um dos pés transmite ao piso uma mensagem indecifrável. Escreve com dedos magros e nervosos alguma boa nova. Levita, nesse momento, o quadril – sentada em brasas? O coque no alto da cabeça – cabelos negros e lisos -, uma altivez repleta de cinismo. Parece dizer: “Não, não quis seduzi-lo, nem abri minhas pernas. Sou discreta demais. Elegante”. Ninguém duvida. Ou quase. Somente o mocinho sentado à sua frente. 13/10/2014 escrito no

O que vi e falei nas eleições durante o segundo turno

Batuco rápido a notícia. A rapaziada chia ao ser retratada. Cavaquinho, pandeiro e tantã. Tiaguinho. Tá vendo aquela lua que bilha lá no céu. O alvoroço das mulheres no refrão. A cerveja espumante para os outros. Para mim, água sem gás. Minha mulher arrisca uns passos. Salgadinhos. A música estanca. O pandeira vira prato. Chovem moedas. Reparo: um adesivo. Malandro vota em malandro. A mocinha conosco, à mesa, vira-se e grita: Dilma! O pagodeiro contrariado: “A gente vota em malandro, moça. Não em marginal. Eu sou Aécio. Boquiaberto, engoli logo a comida. E corri para o cinema. A sessão não seria mais fantástica do que o que foi visto. Buxixo, Tijuca, quinta-feira Em Ramos, Zona da Leopoldina, em uma das estações do BRT, estava escrito em vermelho e, letras garrafais: NOVA ORDEM CULTURAL. Em minhas discussões, denuncio a estratégia da imprensa que através de depoimentos julgados isentos de determinados comentaristas quer alterar a situação estrutural do país.