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Mostrando postagens de 2021

O caso Alexandre Soares Silva

As comunicações dominicais de Alexandre Soares Silva possuem uma leveza ou uma disponibilidade de espírito possível apenas a um sujeito rico retirado do mundanismo paulista ou com uma inequívoca iluminação obtida com iogue em um ashram na terra dos bandeirantes em que feitos assim são comuns a um grupo escolhido. Outro ponto prejudicial às comunicações é a recepção manifestada por uma parcela dos assinantes com a intenção de popularizá-las. Em uma delas, a contraposição do romance realista com o romance de fantasia, uma observação correta sobre a transcendência do último sobre o primeiro pela presença do sobrenatural, é estragada. Alguém disse, em algum lugar, que a literatura d esse tipo é otimista pela presunção de um mundo espiritual, ainda que terrível. A hipótese da riqueza de Alexandre Soares Silva não é absurda. A recorrência ao termo aristocracia em suas entrevistas reunida a gola rolê - prefiro a denominação chique turtleneck - peça presente no vestuário masculino europeu

Videoarte

A performance de Nando Moura atingiu muitas pessoas e levou todas à crença da incineração em uma lareira de centenas de páginas. Ninguém levantou a hipótese de simulacro do ato, tudo foi avaliado moralmente com justificativas tanto para a destruição quanto para a preservação. Quando compartilhei a postagem de Josias Teófilo com o print de um frame do vídeo, com uma frase de efeito, observei primeiro a reação emocional do cineasta (profissional da imagem?) capturado em uma possível armadilha, considerando a hipótese da performance pelos detalhes e o próprio vídeo. Olavo de Carvalho não mostrou independência na análise do vídeo. Foi detido pela carga emocional narcisista desse trabalho de homenagem mais passional do que o filme em que é o protagonista. Talvez não tenha recebido um bilhete de amor tão desesperado na vida. A repercussão do gesto de Nando Moura em outros comentaristas, aparentemente, capazes da compreensão da falsa literalidade do ato, mostra uma ingenuidade e uma fragilid

Cena

Em um recuo da rua principal, três travestis reunidos fazem convites sugestivos aos passantes. Quando passo pelo trecho, a insinuação de sexo oral de um deles não possui graça ou malícia, apenas desespero. Não contenho o riso pelo grotesco da circunstância: o aguaceiro e o dia avançado. A interpretação equivocada do meu gesto provoca a aproximação da magrelinha. O rosto parece recém saído da puberdade. A voz aflautada quer ser convidativa. - Meu único interesse é mamar sua rola. Não vai custar nada além do seu tempo. Lembrei-me dos bichas de minha infância que pagavam aos adolescentes pelas relações sexuais. - Não vai me custar nada além do meu tempo?, provoco. A magrelinha passa a língua nos lábios com avidez, mira minha cintura e repete a promessa. As duas outras colegas observam empolgadas a conversa, com a esperança da divisão da conquista cujo gozo resolveria o furor sexual. - As minhas amigas podem me ajudar? Voltou-me os olhos lampejantes. - Quantos anos você tem? - Dezenove. -

Encontros Notáveis

A materialização do guru indiano Sai Baba em meu quarto hospitalar não pareceu-me extraordinária. Os meus sentidos estavam entorpecidos pelas drogas do tratamento do acidente vascular cerebral e a letargia provocada por elas não permitiu à aparição qualquer impacto mesmo com o visual black power, com a bata alaranjada e o inglês com sotaque. O místico parecia um sósia pretensioso do cantor Tim Maia.   Quando Padre Pio surgiu em meus sonhos, senti-me abençoado e o saudei: - Seja bem-vindo Frei Damião! Ouvi, em italiano, a ordem para olhá-lo outra vez com atenção, seguida da palavra asno. Não restou-me dúvida. Repeti minhas boas vindas. Ele olhou para o céu, pediu a Jesus Cristo por uma tarefa mais fácil nos currais. A certeza de que uma longa amizade surgiria não passou-me pela cabeça em nenhum momento. A longa explanação sobre o demônio durou toda noite. Em um sonho dominado por um indivíduo com estigmas nas mãos, o horizonte de fuga não é alcançado. Citei a visita do Sai Baba durante

Sou artista!

Ele estendeu as mãos em um gesto submisso. Entreguei cinqüenta centavos. A voz sumida: - Comprarei café... A minha esposa repreendeu-me por não ter colocado a máscara durante a doação. Ela está correta. Atravessamos a rua em busca de outro estabelecimento comercial. À saída da loja, ouvimos a discussão do mendigo com o segurança responsável pelo trecho da rua. A tentativa malograda de compra do café é atribuída à influência perniciosa do agente sobre a proprietária do bar com a descrição desairosa do cliente. A repetição exata dos termos não convém ao leitor que deve se deparar com casos assim frequentemente. A repreensão do pedinte não constituiria novidade alguma se ele não pedisse a alteração do próprio status. Em uma rápida defesa, apontou, em um largo, um sanfoneiro e exigiu a mudança de tratamento: - Sou um artista! - disse enfático. O desdém e a descrença disputam a fisionomia do segurança.  Um e outro transeunte também agitado diante da reivindicação do morador de rua. Principa

Oração

Antes do sono, fiz minha oração contundente. O paralítico descido do telhado até Jesus Cristo não pode ser apenas a alegoria do atalho do sofrimento para o céu. A enxerga, na qual foi descido, vazia - tal qual a cruz - e o homem restaurado é fundamental para a manutenção da fé. Um centro de reabilitação infantil é um lugar em que o domingo é destituído de todo sentido, principalmente se você é um dos responsáveis ali presentes. Não ter outro lugar para a própria fé que não o deus para o qual se dirigiu inúmeras súplicas é o nosso paradoxo incômodo. Sem a intoxicação teológica, inclusive cientificista, a dor produz reflexão: "Quem foi o carrasco que o mutilou no útero?" Ou ainda, afasta a miséria do "aprendizado com o doente" em que o ápice é a nossa morte e o abandono dele à compaixão de parentes. Eis a justiça. O adolescente sorri, na fisioterapia, para o pai ao meu lado. Começa a ladainha espiritual, cheia de mansuetude, com o equívoco sobre o mártir - ele, o pai,

Pequeno Poema em Prosa

1. A cabeça de um leão de pedra está em um dos muros do meu bairro. Impassível apesar da intempérie. A tinta branca com que está pintada têm rachaduras e os olhos miram o vazio durante o rugido. Fixada em um muro amarelo, sugere um iceberg que mantém congelado o corpo do animal. 2. A haste fina suspende o beija-flor diante de um girassol na varanda do prédio. Vistos à distância não parecem artificiais. As samambaias compõem um cenário majestoso para o pássaro de plástico enamorado pela flor. Ambos absorvidos pela eternidade do gesto do quase beijo. 3. O rendilhado de gesso da parte central do muro interrompido. Um senhor esclarece: vandalismo. Ele parecia uma bonita fita de presente rompida por uma criança afoita para espiar o pacote. Quantas vezes foi desfeito pelo olhar do velho antes de ser violado para sempre? 4. Ao longo da rua, no alto das casas, uma manada de elefantes miniaturizados saúdam com suas trombas suspensas o tráfego e as pessoas nas calçadas. Vigiam e testemunham tudo

A Revolução dos Bichos - Apontamentos de Leitura

1. Sempre li o discurso do porco Major, de A Revolução dos Bichos, sem a interferência da Revolução de Outubro. Pareceu-me uma utopia ecológica radical em que a questão econômica era secundária diante da necropolítica. A ligação direta com o abolicionismo vegano não permitia dúvida. 2. O desaparecimento do gênero humano é a ambição descrita em um dos capítulos de A Revolução dos Bichos. A chave ecológica: sem o homem no planeta nasceria uma nova ordem sem maltrato animal e destruição dos recursos naturais. Algumas correntes de preservacionistas pensam assim. 3.  Uma pergunta despertada pelo livro de Orwell é a seguinte: os animais participaram da queda? O estabelecimento do animalismo não é livre de contradições em si mesmo ou nos indivíduos participantes do projeto utópico. A égua Mimosa - e não só ela -  é o exemplo direto da questão. 4.  A hegemonia interpretativa acerca de um livro não desautoriza outra abordagem sobre o universo tratado. O romancista Cornélio Penna sofre bastante

O Encontro

Todo final de ano é igual. Compromisso é compromisso, ele sorri. Sandálias de couro, calça preta e blusão. O cabelo ralo, a bengala de madeira e a mão protegia as vistas da incidência de luz. Você não quer voltar? Ele desvia o olhar para a menina que passeia com o cachorro. Respondo que não quero voltar. Bobagem, ele me diz, ninguém quer realmente ir embora, ninguém quer me dar às costas. Tenho todo o tempo. Saio. Ele me segura pelos ombros. Apesar da velhice, ele ainda é forte. Rapaz, não me ignore. Lembre-se: não fui eu que procurei você. Os dedos ossudos apontam para o lado esquerdo de meu peito. A marca dói. Não é difícil, rapaz. Porém, gosto de seu espírito. Você resiste e meu Deus - é uma força de expressão - há quanto tempo eu não tenho uma boa luta. Ele senta-se outra vez. Uma criança corre até ele. Sorri.  A mãe se apressa para pegá-la, pede desculpas pela filha. Ele faz o truque da moeda. Um real. Pode levar para comprar bala. É o começo de sua fortuna, ele vaticina. A mãe da

Diálogo com Lúcio

  [13/7 15:32] Lúcio: Mariel, você leu o artigo Enquanto todos se ajoelham? É exatamente sobre o que conversamos há poucos dias. [13/7 15:34] Mariel Reis: Não li. [13/7 15:34] Lúcio: Tem interesse? Quer que te envie? [13/7 15:36] Mariel Reis: Não. Pois o artigo, reproduzido por aqui, deve falar em civilização ocidental que é justamente o equívoco guia de nossos atos inclusive dentro do conservadorismo. [13/7 15:39] Lúcio: Sim, fala sobre a destruição da civilização ocidental, mas não entendi qual o equívoco. [13/7 15:39] Mariel Reis: Na Europa, o multiculturalismo é culpado de muitas ações. Eles, os imigrantes, não se reconhecem nas tradições aderidas, por isso desfiguram-nas para torná-las mais próximas ao próprio barbarismo. [13/7 15:41] Mariel Reis: No Brasil, não somos europeus (portugueses) apenas. Gilberto Freyre e Bauman falam acerca respectivamente se Portugal e a Europa são de fato parte da Civilização Ocidental. A última mais que o primeiro. [13/7 15:44] Lúcio: Não conheço

O Martelo e a Taça

    A madame sentada confortável diante do quadro não esboça qualquer emoção ao contemplá-lo embora cercada por tantos outros que se poderiam somar à sua reflexão tão impenetrável quanto seu rosto imóvel. Ela balança a taça de vinho, molha vez por outra os lábios, move agudamente as pernas. Descreve com a mão livre os traços do que pode ser a pintura à sua frente ou apenas um cálculo mental dos custos de uma viagem futura. Os outros quadros, em uma ciranda, trocam impressões acerca dela que exigiu a cadeira em que está, encomendou a garrafa de vinho e trouxe consigo a taça acondicionada em uma valise. Nada parecia perturbá-la. Os cabelos longos em um coque deixavam entrever uma nuca bonita, seguida por ombros delicados e costas seminuas. Os seios marcavam o vestido leve, atraindo a atenção dos rapazes de um grupo escolar que transitava pelas outras alas. Ela não parecia se incomodar com a curiosidade a respeito de seu corpo, sabia-se atraente, embora tivesse deixado para trás os quaren

A Liberdade tem muitos nomes

  Sem acesso à rua, minha filha caçula sente falta de nossos passeios pela vizinhança. A minha solução foi a seguinte: comprei um rolo de papelão corrugado. Minha mulher comprou giz de cera. Minha filha mais velha reuniu as fotografias de nossos vizinhos pela internet. Esticamos ao longo de nosso muro o papelão, chamamos a nossa pequena e desenhamos a nossa rua com os seus moradores. Demorou três dias a confecção desse mural. Depois de pronto, passávamos por ele com saudações engraçadas aos personagens. Minha filha caçula distraía-se com a nossa artimanha. Um dia, ela falou:  - Papai, quero ver o Sr. X. Depois disso, não ligou mais ao painel. Percebi que a chave do portão se tornou também a do Paraíso: nossa calçada, nossos vizinhos, partes dele. A gente só queria andar na calçada.