Lima Duarte e sua relação com a Literatura
Brasileiros
– Você
é bastante crítico de alguns filmes que fez, principalmente os
adaptados de livros ou textos literários. Por que essa exigência?
Lima Duarte - Eu sou um apaixonado pela literatura, pelos escritores, pela palavra. Penso que essa paixão muitas vezes interferiu na minha análise sobre os filmes que fiz. Mas quando o filme não foi bom, no meu entendimento, mesmo não sendo adaptado da literatura, também critiquei, pois acho que fazer um trabalho de ator não é meramente decorar um texto e fazer seu papel. Eu gostei muito de ter feito Guerra Conjugal, adaptado do escritor Dalton Trevisan. Ele é um profundo conhecedor da alma humana, assim como todo grande escritor, que filtra o que escuta e transforma em grande literatura. Dalton Trevisan é um especialista na dor de viver, da miséria do cotidiano, das almas desencontradas, da sexualidade. Foi assim também com o filme O Jogo da Vida, com base no livro Malagueta, Perus e Bacanaço, do escritor João Antônio, que trouxe a vida operária de São Paulo para a literatura brasileira. Mas sei que Sargento Getúlio, com base no livro homônimo do escritor João Ubaldo Ribeiro, foi o meu filme melhor adaptado de um livro. No entanto, é um filme muito pobre, com recursos técnicos muito precários, o que de certa forma comprometeu um pouco o resultado final. Entre os filmes adaptados de livros que fiz, o mais infeliz, e que poderia ter sido um grande filme, foi Os Sete Gatinhos, com base na peça homônima de Nelson Rodrigues, que para mim é uma de suas melhores peças, se não a melhor. Mas o diretor Neville D’Almeida pecou muito na forma como retratou a história, na maneira de dirigir os atores. Um dia, estávamos no set quando apareceu o artista plástico Hélio Oiticica, que era um grande artista, mas que desconhecia completamente o ofício de dirigir um filme. Daí, o Neville disse que diante daquele grande artista ele não poderia criar nada, não poderia dirigir. Deixou a função para o Oiticica, que subiu numa espécie de grua e falou: “Eu não quero fazer sucesso na Suécia, quero fazer sucesso na Nicarágua. Ação!”. Ficamos, eu e as atrizes, perdidos, não sabíamos o que fazer. Eu disse: “Vamos andando para aquele lado, depois voltamos e andamos para o outro”, e assim foi feito. Pode parecer engraçado, mas isso me deixou muito insatisfeito, por saber que estava atrapalhando o resultado do filme.
Brasileiros
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Você
é apaixonado pela literatura, principalmente pelo escritor João
Guimarães Rosa. Qual a importância da palavra para o seu ofício de
ator?
Lima Duarte – Pode até ser um sacrilégio o que eu vou dizer agora, mas literatura para mim é antes de tudo entretenimento da alma. Quando leio, entretenho minha alma que passa a morar noutros lugares, noutros seres. Vou contar uma história para ilustrar o quanto a palavra foi e é importante para mim. Eu morava em Ribeirão Preto e, na época, era um meninote, trabalhava entregando vasos sanitários nas casas. Um dia, estava indo entregar um desses vasos sanitários e fazia um calor danado. Eu tirei o vaso da minha cabeça e fui me encostar numa sombra e sentei um pouco sobre o vaso e fiquei naquela sombrinha gostosa. Depois de uns instantes, olhei para cima e vi um prédio com um letreiro grande “Biblioteca”. Deixei a privada do lado, fui entrando e perguntei para uma senhora, que me pareceu ser funcionária, o que era aquilo. Ela me respondeu que era o lugar onde havia livros e onde as pessoas iam para fazer pesquisar, estudar e ler. Quando entrei, vi que havia umas pessoas sentadas e fiquei olhando meio deslumbrado com tudo aquilo. Vi que outra senhora, que devia ser outra funcionária, me encarava feio e, para disfarçar e descansar um pouco, me sentei numa cadeira em torno de uma mesa grande e em cima da mesa tinha um livro. Eu o peguei e fingi que estava lendo; olhava a senhora que me observava e também a privada que havia deixado do lado de fora, pela janela ao lado da mesa. Depois de uns segundos, fiquei mais calmo e comecei a ler o livro. Fui lendo, lendo, lendo e encantado com a leitura que esqueci até da senhora que me encarava e do vaso sanitário do lado de fora do prédio. O livro era Grandes Esperanças, do escritor inglês Charles Dickens, o meu livro preferido, muito em função da maravilha da descoberta da leitura e do prazer de me entreter com uma história. O personagem do Pipi entrou na minha alma para sempre e sempre que posso leio novamente Grandes Esperanças. Às vezes, me perguntou por que ao longo de todos esses anos eu fui lendo esse livro, e penso que o li para encontrar aquela privada ou aquela senhora que me olhou desconfiada ou simplesmente para voltar a me encantar com a descoberta do prazer de ler. Uma visão bem proustiana (Marcel Proust, que escreveu o grande Em Busca do Tempo Perdido) da busca de algo que ficou perdido em nossa memória. Eu li tanto Grandes Esperanças que até decorei trechos em inglês. Fico louco com isso, deliro com a palavra, com o prazer de conhecer os vocábulos e ir descobrindo o mundo em volta. Isso me encanta ainda hoje. Meu livro é Grandes Esperanças e meu escritor é Charles Dickens.
Brasileiros
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Mas
você é um grande conhecedor e admirador da obra do escritor João
Guimarães Rosa, dos Sermões do Padre Antônio Vieira, de Dalton
Trevisan, de João Antônio, de Carlos Drummond de Andrade, de
Shakespeare, de Fernando Pessoa, de Erasmo, entre tantos outros…
Lima Duarte – O livro Grande Sertão: Veredas de Guimarães Rosa é minha bíblia, meu livro de cabeceira, e todas as noites eu o abro em algum lugar e leio um trecho. A vida de alguma forma está colocada lá: nossos medos, nossos assombros com o mundo, a paixão, o desejo, o tormento das dores da vida, do amor. Sou um apaixonado e delirante da palavra. Adoro literatura, e gosto de todos esses autores que você citou e mais uma centena. Quando fiz o filme Palavra e Utopia de Manoel de Oliveira, onde faria o papel do Padre Antônio Vieira, fui ler sobre sua vida e seus Sermões. Lembro-me de que eu saía toda manhã pelos arredores do meu sítio no interior de São Paulo lendo em voz alta os Sermões de Vieira e as pessoas olhavam para mim espantadas e falavam baixinho: “O Zeca Diabo está doido” (risos). Foi assim com Dalton Trevisan, foi assim com João Antônio e com outros escritores. Tem um sermão, do 4º Domingo, do Vieira, que diz o seguinte: “A mim a imagem dos meus pecados me comove muito mais que essa imagem do Cristo crucificado. Diante dessa imagem do Cristo crucificado, sou levado a ensoberbecer-me por ver o preço pelo qual Deus me comprou, diante da imagem dos meus pecados é que eu me apequeno por ver o preço pelo qual eu me vendi. Por ver que Deus me compra com todo o seu sangue, eu sou levado a pensar que eu sou muito, que eu valho muito. Mas quando noto que eu me vendo pelos nadas do mundo, aí eu vejo que sou nada. Eu valho nada”. Isso é muito bonito, muito profundo, muito humano.
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