Todos Os Homens São Iguais


Charlton atravessou rápido a rua. A multidão não esperava vê-lo ali, naquela hora, no ponto alto do protesto, vestido elegantemente em um terno preto, mirava com olhar penetrante os guardas que formavam um condão de segurança para impedir a entrada dos manifestantes. Pediu passagem à multidão, que imediatamente obedeceu. Subiu pelo elevador até o último andar do prédio, lá, sentado em uma cadeira estava o presidente da organização. Pela janela observava o coro dos manifestantes, pedindo justiça. A maioria homens negros, vestidos com simplicidade, empunhando cartazes com palavras de ordem. O presidente da organização não se deu o trabalho de notar que Charlton estava em sua sala. Adivinhava sua presença pelo ruído do sapato de Heston no carpete.


Dirigiu algumas palavras ao ator “O que faz aqui na minha sala? Marcamos alguma reunião? Não estou interessado em patrocinar nenhum de seus filmes”. “Eu não concordo com o espancamento daquele homem”, disse. “Homem negro, você quer dizer, não é”. “Isso mesmo, daquele homem negro”, reafirmou. “Então é isso; acha que pode me fazer mudar de idéia, não é? Você não sabe o que aquele homem negro fez, sabe? Alguém já contou o que aquele monte de excremento fez?”, perguntou o presidente da organização. “Não, ninguém me disse nada do que fez aquele homem”. “E não vejo motivo para ele ter sido espancado como foi tão brutalmente”. “Charlton Heston, se você pudesse ver o futuro não discutiria comigo”. “Acontece que eu posso vê-lo daqui de minha janela, e o futuro é um monstro negro, com olhos negros, garras perfurantes, que quer nos tirar aquilo conseguimos a custa de muito trabalho”, sentenciou o presidente da organização. Lá fora o tumulto aumentava; a imprensa cobrava explicações da assessoria de imprensa sobre o homem encontrado em estado grave em uma das lixeiras próximas à instituição. A multidão cantava músicas que evocavam o fim da luta entre irmãos; um homem negro, corpulento, discursava para uma rede de televisão e rádio. Alguns já o tinham dado como morto. Mais tarde, conforme o previsto anunciaria a morte deste homem e nas ruas fileiras inteiras marchariam para seu enterro.

“O cachorro teve coragem de olhar para a minha filha! Imagine um negro se engraçando com a minha filha, negro filha de uma puta! Minha filha também teve um corretivo para não dar trela para indivíduos de segunda classe”, pontuou o presidente da organização. ”Se não fosse ilegal, atiraria nesses negros como em animais de caça, somente pelo prazer de pendurá-los na minha sala como troféus”. Charlton reparou acima da lareira um rifle atravessado como marca do crescimento econômico daquela família. Era um rifle de caça para búfalos. ”Atiraria em homens como aqueles com um rifle deste tipo? Só porque desejam justiça, que sejam tratados como iguais e não como gado”, Heston disparou.


O tumulto estava incontrolável. Saíam carros repletos de homens negros, presos. A polícia lançava gás para dispersar a passeata. Os gritos de assassino eram ouvidos na sala onde estavam Heston e o presidente da organização, que cismava em se manter de costas para o ator. Não dando a descobrir o seu rosto, prosseguia desfilando o ódio através de suas palavras.


“Se você pudesse ver o futuro, e, estivesse no lugar que ocupo agora, entenderia perfeitamente o que quero dizer”. Esses degenerados acabarão com a América. E se não fizermos nada tudo estará perdido. É melhor exterminá-los como aos ratos para não transmitirem a peste aos nossos filhos. Se depender de minha vontade essa praga não contaminará a mais ninguém. “Nenhum degenerado irá tirar esse rifle de minhas mãos, nem mesmo você poderá me convencer, Charlton”.


As luzes começavam a ser acesas. A rua tomada por um caminhão com um canhão d’água que combatia os manifestantes que relutavam em entregar os pontos. Agora havia uma fileira de homens negros sentados, de braços dados, cantando como homens livres devem cantar quando perseguem uma causa. Ouviam-se apelos ao Senhor por justiça, lamentos dolentes pelo irmão vitimado pela violência dos brancos.


“Todos os homens são iguais”, pronunciou-se o ator quebrando o silêncio da sala. “São iguais a você que cisma em se confundir com eles, os porcos.”


O presidente da organização apontou o brasão de sua família. Defendeu o que cada um de seus antepassados fez por aquele país; os empregos que dava aos cidadãos decentes, e, empregava alguns negros como faxineiros. Não serviam para o trabalho de manuseio com as armas.


“É melhor não perder mais seu tempo. A vitória será minha, o tempo se encarregará de lhe mostrar isso, claro, se viver até lá poderá ver com os próprios olhos”. Heston fixava seu olhar nas costas daquele homem, não perderia por nada a oportunidade de golpeá-lo com uma faca e arrastar seu corpo até a janela e jogá-lo no jardim da fábrica diante dos olhos estupefatos dos manifestantes e dos policiais.


“Já estou de saída”, anunciou Charlton. “Talvez tenha sido uma perda de tempo enorme, mas, precisava saber, e me decepcionar”.


A cadeira girou lentamente. O presidente da organização levantou-se para se despedir de Charlton Heston. Quando ele lhe estendeu a mão era como se estivesse diante de um espelho. Os olhos de Heston vacilaram, procuraram medir com acuidade o que viam. “Se você pudesse ver o futuro”, o presidente da organização ria com o canto dos lábios. Apertaram as mãos. O ator seguiu para casa assombrado, examinou seu rosto, cada milímetro, não poderia ser ele mesmo aquele homem. Não, ele, não. “Todos os homens são iguais”, repetiu com a convicção enfraquecida. Um dor aguda paralisava-lhe os membros. Tomou tranqüilizantes. Naquela noite desejou a sorte de Édipo : a cegueira, a mais completa cegueira.

Comentários

Ana Paula Maia disse…
Muito bom este conto. Bem escrito. Gostei sim.

Se fosse o Charles Bronson no lugar do Heston, ele em algum momento,
ele usaria uma de suas melhores expressões:

"Seu verme imundo".
Ana Paula Maia disse…
Ah.... este conto lembrou-me a mim mesma. rs.
Anônimo disse…
Du - Ká!!!!
Anônimo disse…
Só a morte é real...

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