Iberê
O calor das ruas estava insuportável. O bairro de Botafogo asfixiado pelo trânsito e sirenes, os prédios esgueirando-se para chegar ao céu como a Torre bíblica, e, nas janelas a existência congelada de uma parcela da população aposentada, desempregada, ou, simplesmente de homens que apenas observam a paisagem móvel e multicolorida, instantânea das multidões.
A multidão, este monstro, arrastando-se pelas ruas, desatinada e intranqüila, desaguando nas portarias dos edifícios, escoando pela abertura dos bares, lojas e shoppings como por um ralo que mais a frente confluísse para uma nova rua e sistematicamente tudo isso voltasse a acontecer.
Meu olho fixo no chão, empurra para trás a saudade da minha terra, longe, de infinitos horizontes, onde repousa o homem na sela de seu cavalo, sentindo o vento frio das cordilheiras, acossado pelo sotaque dos vizinhos. Lembranças que carrego comigo dentro dessa metrópole, nessa cápsula que é o meu corpo a me conduzir como um estímulo nervoso pelas células das avenidas, contornando praças, detendo olhar nos chafarizes, nos monumentos abandonados aos pombos.
Certas horas é melhor meter uma bala nos miolos, penso.
A pintura abandonada no cavalete, sem a solução adequada, sem a tonalidade definitiva, e, com aquele estranho detalhe marrom no canto inferior esquerdo. Não me lembro de tê-lo colocado ali, mas não importa. O céu azul desta metrópole perturba o juízo de um homem, influencia sobre o comportamento do misantropo, violenta o tímido. Todo o desenho do Rio: linhas que contornam a paisagem, calmas e firmes. Minha vontade não obedece a essa calma, não encontra bula para se manter segura, e, há sempre alguma coisa me assombrando que não detecto o que é.
O calor insuportável, a gola de minha camisa está um nojo, será melhor jogá-la fora do que lavá-la; pegajosa, uma consciência pegajosa adere sobre a minha superfície: composta de poeira, traços de recordações e azul. Não há salvação para minha condição de animal enjaulado.
Resolvo tirar a sorte com a cigana parada na esquina. É uma bobagem o que dizem, mas distrai. Tiro do bolso uma nota de valor pequeno; o dente de ouro saliente da cigana reluzia, a face pequena e as orelhas repletas de brincos dourados, a fala arrevesada, dispunha os fatos sobre uma suposta traição de minha mulher com um conhecido, que tivesse cuidado ao dirigir, se tinha automóvel, porque corria risco de acidente, e, tudo aquilo me distraía. Entremeava com suas palavras orações incompreensíveis, prometia abrir meus caminhos, desenhava pequenas cruzes na palma de minha mão.
Entretanto, a cigana deteve-se um segundo. O sorriso desaparecera do rosto infantilizado e escuro, suas palavras tornaram-se claras e obedientes a uma voz segura e quase limpa da pronúncia suja de um sotaque repleto de remendos de palavras oriundas de línguas diferentes, às vezes até inventadas. Devagar arrumou as palavras na frase que me perseguiu os ouvidos durante todo trajeto “O Sr. irá matar um homem”. Sai indignado; antes quis pagar, mas a cigana não aceitou o dinheiro, balançando negativamente a cabeça. Depois se afastou, como se naquela única vez a verdade se intrometesse em suas previsões.
Tiene mala dicha, murmurou, antes de voltar para pegar o dinheiro.
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