O Leitor de Corpo Inteiro



O expediente da leitura em livrarias era o meu favorito. O dinheiro era curto, não sabia quando poderia comprar o livro, então, me enfurnava durante uma hora, todos os dias, na tentativa do término da leitura do volume exigido do meu curso de graduação. Nesta época, minha irmã havia interrompido o estudo, preferindo o baile funk; os namoros no paredão, apoiado por meu tio que via uma perda de tempo no meu esforço por conseguir o curso superior. Ou, então, contrariando as expectativas, afirmar, com o comportamento de minha irmã, que ela poderia ser bem sucedida aliando indisciplina – as noites passadas no baile – com certa espontaneidade – a teoria de que o universo conspiraria a favor de um individuo se de fato ele fosse talhado para determinada missão, encarregando o destino de realizar boa parte daquilo que cabe a pessoa fazer. Isso me entristecia, por vê-los sempre alegres, enquanto, grave, mantinha o leme firme sob as mãos para a embarcação não se perder.


Não desanimei. O hábito de freqüentar a livraria acabou por me tornar conhecido como o menino que lia em pé – nesta época ainda não pensavam nos leitores como um mercado sério, e, a maioria das livrarias não tinha aquele sofá hoje tão conhecido. Lia, descansava cerca de cinco minutos da leitura, andando entre as gôndolas de livros, esticando as pernas dormentes, pisando firme para o pé acordar do torpor da cãibra, mexendo o pescoço duro pelo esforço de se manter tanto tempo em uma só posição, os olhos lacrimejavam pelo atrito constante com as linhas, sem desviarem-se, as mãos também sofriam com o cansaço. Então, recebi de um senhor que rondava a livraria o apelido de leitor de corpo inteiro, porque atribuía a minha vontade de leitura e o esforço do corpo para se manter imóvel a extrema vontade de um iogue, destes que para alcançar o nirvana se aplicam em desdobrar o corpo, levando-o ao limite, como se pudessem silenciá-lo em seus desejos. Eu lia com o corpo inteiro. Lia todas aquelas tardes por uma hora, acreditava na minha salvação, obtendo o curso superior, minha ambição era esta: a felicidade estaria na conclusão do curso: o coroamento do esforço daquelas leituras.


Meu tio e minha irmã comentavam sobre a porradaria no Pavunense, descreviam como seus heróis livravam o próprio couro dos perseguidores, narravam epopéias onde ônibus eram invadidos, e, de dentro deles eram arrancados os alemãos, punidos com severidade primitiva pelos rivais. Aquelas descrições não me animavam, nem acendiam meu desejo para participar desse Panis et circus, elaborado para embotar as mentes daqueles jovens da periferia que aos poucos se tornariam caixas de supermercado, seguranças, jardineiros, entregadores, flanelinhas, bandidos, toda mão de obra oriunda dessa classe. E não seria diferente comigo, claro. Minha faculdade me possibilitaria ser um operário especializado, mas operário. Servindo aos ascendentes da barbárie, aqueles salvos no afunilamento que a miséria produz, e, a estes outros, ricos de fato, os protagonistas desse país, espalhados pelas escolares particulares e institutos. Desisti do ideário social daquela missão, era como todos se referiam como status do professor.


O leitor de corpo inteiro – talvez a denominação fosse a mais encontrada sobre aquilo que seria minha obrigação/prazer durante toda minha vida, isto é, até aqui. A diferença é que meu direcionamento profissional mudou radicalmente. A necessidade de engolir qualquer coisa me empurrou para tarefas que não me encantariam se eu estivesse em uma posição que me permitisse escolher. Não posso maldizê-las, retribuíram minhas expectativas, as tarefas, mesmo pouco nobres, desempenhadas às vezes com desdém, porque, na juventude, só o sonho tem importância. Todas as demais coisas, desprezadas como se não fizessem parte da vida. O que é um erro. Meu avô materno classificava a juventude como uma intoxicação irresistível ao organismo. Talvez tivesse certo sentido em sua frase.


Minha irmã não cumpriu o programa pedagógico que misturava hedonismo, panis et circus; acabou engravidando, perdendo a adolescência entre fraldas, remédios, dores de cicatrização. O meu tio tomado pelas ilusões romanescas de juventude mantém certo ar de Dom Juan de Marco, arriscando relacionamentos clandestinos; casou-se.


A vida, ao contrário dos livros, não coloca pontos finais em seus episódios

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