O Meu Aniversário e As Noites Místicas



O meu aniversário coincidia com as crises... Era desta forma que eu começava minha primeira redação escolar, porque minhas lembranças de aniversário associavam-se aos períodos críticos enfrentados por minha família ao longo do ano, sempre alguém estava desempregado, passando doença e não era raro episódio de morte. Isso tornava bastante desagradável aniversariar lá em casa, portanto passei a fugir como o diabo da cruz da data festiva, criando maneiras de burlar a comemoração, impedindo deste modo à desgraça de se aproximar dos meus familiares.


Desconfiei até que era uma espécie de maldição. Perguntei várias vezes se minha avó não teria proferido em sua fúria alguma praga, enquanto repousava eternamente em berço esplendido, na barriga de minha mãe. A hipótese nunca teve confirmação, mas não foi negada. Apesar de minha avó paterna ter uma ligação especial comigo, sempre pensei em mau agouro. Superstições como olho grande. Na minha redação escolar sempre trazia uma fato sobrenatural, retirado dos relatos trazidos por uma vizinha dos terreiros que freqüentava como filha de santo.


Os relatos me impressionaram tanto que muitas das vezes acordava, gritando, chamando por meu pai. Ele acordava assustado no meio da noite, me perguntava o que estava passando, e, vendo que descrevia as fantasmagorias do sono, concluía que os pesadelos nasciam da atenção excessiva dedicada ao ouvir os casos da vizinha macumbeira. Então me proibiu de ficar atento aos comentários desta mulher, se não quisesse ficar fraco dos nervos.

A professora da escola não deixava por menos. Indicava-me leituras que para minha idade eram fortes demais, e, no auge do delírio, acreditando estar lidando com um gênio, porque não adiantava convencê-la de que tudo aquilo era uma transcrição do que tinha ouvido no quintal de casa, nas conversas de minha mãe com a vizinha espírita, resolveu me dar o livro de certo autor baiano, envolvido com a noite mística que se adensava dentro de mim.


Meu pai me vendo chegar com o calhamaço riu. Tenda dos Milagres. Isso não é para sua idade, me dê cá isto. Tomou o livro de minhas mãos, e, concluiu se é para ler este tipo de coisa é melhor estar orientado por mim. Apanhou um volume e separando o que lhe interessava do livro, me disse para ler somente o que estava preso por um clipe. Obedeci, mesmo pulando algumas páginas, saltando para o final do volume, interrompendo as peraltices daquele Compadre de Ogum.


Meu aniversário passou a ser melhor, devido aos mistérios que se esclareciam, e, que muito pouco minha presença influenciava os fatos como eu próprio acreditava. Desvencilhei-me da síndrome do azarão – a leitura afugentou alguns temores. E cessaram de morrer os parentes, de ficar desempregados os amigos. Pelo menos era o que eu percebia. Se alguma coisa dessas lhes acontecia era em outra data, porque no meu aniversário o aspecto das coisas mudava.


As crises sobrevieram. Minha adolescência ao lado de um bando de neuróticos; o conhecimento da danação inquietando meu corpo, me levando a me esfregar nas menininhas do colégio. O hábito da comemoração, este, sim, se perdeu. Não houve jeito de recuperá-lo como tento resgatar esse menino, perdido na mística noite das descobertas sobre as estórias de outros mundos.

Comentários

Aurea Bèart disse…
Passando a família a limpo, Mariel???

Gosteio do encantado...

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