Resenha Sobre o Livro Vida Cachorra
O latido da prosa
A literatura contemporânea é cheia de trocadilhos e peças pregadas. Talvez sempre tenha sido assim ao longo da história. Mas é neste bojo que me encontro. É neste mar que pesco, é onde vejo e leio os parcos livros que consigo obter, entre uma luta e outra para garantir o pão.
Foi assim que me chegou às mãos um pequeno exemplar de maldades cotidianas, o livro Vida cachorra (Usina de Letras, 2011, 78 páginas), do carioca mariel reis (tal como assina o autor). É uma bela peça. Um livro que imprime a marca da marginalidade, a voz dos esquecidos, a miséria sem grandeza, a confissão ordinária dos malditos.
São 12 contos forjados numa linguagem seca e rápida. Em alguns casos, os contos estão carregados de cinema e rap que convidam o leitor a uma espécie de dança ‘fenomelopaica’, como no que abre a coletânea, Absolvição. Aqui o narrador depõe seu crime a um suposto delegado.
Seduziu a enteada, ainda garota. Ao flagrar a filha com o marido, a mãe se desesperou e os esfaqueou, em meio a um jogo armado de sangue e baixeza. Tudo isso o narrador conta ao tal doutor. Ele está prezo pela denúncia de estupro. O desfecho da história – mãe e filha alternando visitas íntimas ao criminoso – é a tônica da vida cachorra de cortinas abertas.
Os personagens de reis confessam os crimes, mas também o ambiente miserável onde vivem, onde se reconstroem todos os dias. Se a desgraça humana é obscena, pode ser descaramento falar dela com tanta naturalidade. É cinismo. E este é o ponto do projeto literário de reis.
Nivelamento
Se literatura é transgressão, o autor procura transgredir, não sem um senso estético. Mas sua matéria-prima já é pura dinamite. Dizer até onde ele chegará é o tipo de exercício que requer mais tempo de avaliação. Seus contos neste livro trabalham a vida marginalizada de modo horizontal, tudo está no mesmo nível, ou quase tudo.
O doutor ainda é doutor e senhor. O resto é “filho da puta mesmo”, cachorros, senhores da vida rota, sem nomes, sem donos. Um dos marcos desta horizontalidade é a maneira estilizada de narrar. A maioria dos personagens se parece, no trato com a narrativa, no tom da fala, do vocabulário.
Outro nivelamento é o texto inteiro em minúsculas (horizontalidade gráfica). Esta atitude, aliás, já parece ser uma tendência pós-cummings, que não cabe aqui a análise, mas é repetida por escritores como Whisner Fraga e o português valter hugo mãe (como reis, escreve o próprio nome em minúsculas e em seu último livro também tratou dessa representação zoomórfica).
No caso do cinismo como método expositivo, o autor tem lá suas referências, inclusive citando Michel Foucault na epígrafe. Mas vale lembrar o que diz Nietzsche, segundo o qual, os cínicos confessam ingenuamente a animalidade, a vulgaridade.
“O cinismo é a única força sob a qual as almas vulgares roçam o que se chama sinceridade”, diz o mestre destruidor de tudo. Eis uma chave para acessar o pequeno livro de reis. Em Absolvição, o personagem narrador fala abertamente sobre sua real condição.
Falar assim a uma autoridade é estar com a alma livre para não sentir o peso moral, nem a ameaça da lei. É como os cínicos. É um cinismo entre aquilo que se entende por cinismo hoje (só descaramento) e o conceito grego.
Para certa escola grega do século IV a.C., ser cínico era desprezar a riqueza e o prazer, acreditando que o objetivo do homem é a felicidade, mas a felicidade que consiste na virtude, sem adornos materiais, encontrada na simplicidade semelhante à vida dos cães de rua.
A voz dos marginais
Essa proposição cala na alma o mais profundo dos risos ou dos pesares, quando se olha para os pobres de hoje. Vida cachorra tem essa ironia, expondo a dicção dos homens sem tato, a voz dos marginais.
Ler o livro é como ouvir os entrevistados de Gil Gomes. Ainda em Absolvição, há duas lapadas retóricas entrecortadas pelas frases refinadas e certeiras de Tolstoi. “todas as famílias felizes se parecem, as infelizes o são cada uma à sua maneira.”
O interessante é que há ali um jogo de contrastes. No lugar em que se espera a felicidade, há o conflito. O conflito se instala no ambiente da paz, no ‘aconchego do lar’. Já na segunda parte, quando a infelicidade seria traçada, com o personagem na cadeia, quem reina no local de crise é a harmonia. Uma felicidade possível, contrária à felicidade dita pequeno-burguesa.
Neste sentido, o livro de reis é um outdoor que mostra o disparate de valores entre os que têm posses, que podem ser canalhas tanto quanto os outros, mas que podem se proteger, e os que não têm, fios desencapados, largados à margem. Sugere o fosso entre os vira-latas e os de pedigree.
Reis, editor do blog Cativeiro Amoroso e Doméstico, é um jovem autor que vem surgindo devagar no fluxo da nova geração de escritores brasileiros. Nasceu em 1976 no Rio de Janeiro. Cursou Letras na Universidade Estadual (UERJ) e já havia publicado um livro de contos, John Fante trabalha no Esquimó (Caliban, 2008, 80 páginas).
Além disso, está em Paralelos - 17 contos da nova literatura brasileira (AGIR, 2004, 102 páginas), junto com revelações interessantes, que já se tornaram celebridades das letras, por um motivo ou outro, como Tatiana Salém-Levy, Antonia Pellegrino, Cecilia Giannetti e João Paulo Cuenca.
Mantra
A esses jovens escritores, vale perguntar: o que dizem? como dizem? por que dizem? No caso de reis, sua literatura quer se firmar como um contraponto ao cânone, como todo jovem escritor que demonstra ter talento. Resta saber se vai conseguir se sustentar, pois ainda não dá para se fazerem previsões. Mas é possível ler seu texto sem o prejuízo do bocejo.
Esta literatura que retrata a vida cachorra demonstra outra coisa importante. As normas armadas pelo Estado Democrático de Direito nem sempre (ou quase nunca) têm a ver com o espírito da vida prática de quem vive à margem. Esta vida é regida por outras baquetas.
Vida cachorra também pode ser um mantra para quem tem medo de palavrão. Leia o livro em voz alta, interprete, faça-se passar pelo desvairado e violento ser que confessa seus crimes, entre eles, o de viver como um chutável cão de quinta categoria.
Em Amor filial, há o exemplo do riso cínico da vida. “estudei um pouco. terminei o científico”, diz anacronicamente o narrador deste conto. Ele pode até acreditar que isso seja um diferencial, e pode até sê-lo no ambiente em que vive. Mas na sociedade contemporânea, até os cursos superiores estão banalizados, que dirá o ensino médio público (certamente o caso do confessor).
O conto em questão fala de um rapaz, ex-presidiário, que morava com a mãe e o irmão gêmeo que sofria de transtornos psicológicos. Só os três. O rapaz é quem narra. Sua narração é um exemplo de como o autor se apropria de outras técnicas, como a do cinema.
Num dos trechos, o narrador diz: “cheguei em casa tarde. meu irmão não estava. minha mãe preocupada. teu irmão saiu e não voltou ainda. pra que lado ele foi? perguntei aos moleques da rua.” Veja como o plano muda de dentro de casa para a rua num átimo. Não é invenção de reis, mas é uma síntese, em todo caso. É uma montagem.
Há também a paródia sutil do posicionamento do personagem de Grande sertão: veredas. A diferença é que, enquanto Riobaldo fala a um homem considerado doutor tanto pela importância social quanto pelo título talvez de médico (talvez o próprio Guimarães Rosa), os personagens de reis falam a um doutor pela força da autoridade, não pelo respeito que se tem, mas pelo medo tácito, pelo poder do outro.
Essa abordagem é ao mesmo uma paródia e apenas a tônica da realidade. As pessoas simples, de frente para um delegado, por mais reles e ignorante que este seja, por mais canino, elas não hesitarão em chamá-lo de doutor, porque não verão nele seu igual, mas seu superior.
O doutor somos nós
O que a literatura de reis tem a dizer? É isso. Ela sugere com bastante contundência os meandros da vida cachorra. Mais do que isso, ela expõe, escancara, grita, late, berra. Ela é um pequeno tratado da maldade cotidiana, da maldade imposta sobre o homem, que a aceita, que a toma como inseparável companheira, por não ter o que fazer, por não saber como fazer diferente.
Cabe aos personagens argumentar sem esperança, numa postura aberta, trazer a face da desgraça humana como um espelho, em que os dois lados da moeda aparecem: os vira-latas e os de pedigree. Tudo isso é feito de modo consciente, uma consciência puxada desde a epígrafe de Michel Foucault, conforme o trecho abaixo.
“a parrésia é uma forma de crítica tanto ao outro quanto a si mesmo, mas sempre numa situação em que o crítico encontra-se numa posição de inferioridade em relação ao interlocutor. o parrésico é sempre menos poderoso do que aquele a quem dirige a palavra. a parrésia vem “de baixo” e se dirige a quem está “em cima”.
Nesse sentido, não só os personagens, mas também o autor se coloca humildemente como um deles. E nós, os leitores, somos o doutor. Nós, a sociedade, somos quem está em cima. É uma provocação dos diabos. Aliás, Deus e o diabo na prosa de reis se encontram no mesmo nível gráfico, com menos poder de agilidade para o primeiro. “deus age devagar demais”, diz um dos personagens.
Bruteza
Dos 12 contos, um ou dois parecem não ter funcionado bem. Parecem ter fugido da tônica, como o Espírito natalino, em que um bandido vestido de Papai Noel deixa de matar a encomenda depois de conhecer o filho da vítima.
Há nesse conto um pathos incompatível com a vida canina proposta na espinha dorsal do livro. Tem pouca tensão e um desfecho frouxo. Em contrapartida, o conto Despejo oferece ao leitor fortes doses de ironia e bruteza humana. É narrado por uma senhora de 50 anos, analfabeta, moradora do Parque Felicidade, uma área ocupada ilegalmente.
A mulher foi despejada de sua casa, demolida pela Defesa Civil. Ela e sua neta (que fora abandonada pela mãe) ficaram sem teto. Nesse ínterim, “minha menina arruma um companheiro. o cachorro é pequeno, malhado. ela aperta o animalzinho. meu irmãozinho, vó. posso ficar com ele? fica.”
“vó. o que é. ele também nunca ficará sem casa. ah, é. por que? vou ser sempre a casinha dele. aquilo me deu um troço no peito, uma vontade de chorar. não sei bem direito por que.” Isso é cinismo do personagem. A velha sabe. E a situação toda é fruto do descaramento social e político. Viver é mesmo muito perigoso.
Fonte: http://leiturasdogiba.blogspot.com/2011/03/o-latido-da-prosa.html
A literatura contemporânea é cheia de trocadilhos e peças pregadas. Talvez sempre tenha sido assim ao longo da história. Mas é neste bojo que me encontro. É neste mar que pesco, é onde vejo e leio os parcos livros que consigo obter, entre uma luta e outra para garantir o pão.
Foi assim que me chegou às mãos um pequeno exemplar de maldades cotidianas, o livro Vida cachorra (Usina de Letras, 2011, 78 páginas), do carioca mariel reis (tal como assina o autor). É uma bela peça. Um livro que imprime a marca da marginalidade, a voz dos esquecidos, a miséria sem grandeza, a confissão ordinária dos malditos.
São 12 contos forjados numa linguagem seca e rápida. Em alguns casos, os contos estão carregados de cinema e rap que convidam o leitor a uma espécie de dança ‘fenomelopaica’, como no que abre a coletânea, Absolvição. Aqui o narrador depõe seu crime a um suposto delegado.
Seduziu a enteada, ainda garota. Ao flagrar a filha com o marido, a mãe se desesperou e os esfaqueou, em meio a um jogo armado de sangue e baixeza. Tudo isso o narrador conta ao tal doutor. Ele está prezo pela denúncia de estupro. O desfecho da história – mãe e filha alternando visitas íntimas ao criminoso – é a tônica da vida cachorra de cortinas abertas.
Os personagens de reis confessam os crimes, mas também o ambiente miserável onde vivem, onde se reconstroem todos os dias. Se a desgraça humana é obscena, pode ser descaramento falar dela com tanta naturalidade. É cinismo. E este é o ponto do projeto literário de reis.
Nivelamento
Se literatura é transgressão, o autor procura transgredir, não sem um senso estético. Mas sua matéria-prima já é pura dinamite. Dizer até onde ele chegará é o tipo de exercício que requer mais tempo de avaliação. Seus contos neste livro trabalham a vida marginalizada de modo horizontal, tudo está no mesmo nível, ou quase tudo.
O doutor ainda é doutor e senhor. O resto é “filho da puta mesmo”, cachorros, senhores da vida rota, sem nomes, sem donos. Um dos marcos desta horizontalidade é a maneira estilizada de narrar. A maioria dos personagens se parece, no trato com a narrativa, no tom da fala, do vocabulário.
Outro nivelamento é o texto inteiro em minúsculas (horizontalidade gráfica). Esta atitude, aliás, já parece ser uma tendência pós-cummings, que não cabe aqui a análise, mas é repetida por escritores como Whisner Fraga e o português valter hugo mãe (como reis, escreve o próprio nome em minúsculas e em seu último livro também tratou dessa representação zoomórfica).
No caso do cinismo como método expositivo, o autor tem lá suas referências, inclusive citando Michel Foucault na epígrafe. Mas vale lembrar o que diz Nietzsche, segundo o qual, os cínicos confessam ingenuamente a animalidade, a vulgaridade.
“O cinismo é a única força sob a qual as almas vulgares roçam o que se chama sinceridade”, diz o mestre destruidor de tudo. Eis uma chave para acessar o pequeno livro de reis. Em Absolvição, o personagem narrador fala abertamente sobre sua real condição.
Falar assim a uma autoridade é estar com a alma livre para não sentir o peso moral, nem a ameaça da lei. É como os cínicos. É um cinismo entre aquilo que se entende por cinismo hoje (só descaramento) e o conceito grego.
Para certa escola grega do século IV a.C., ser cínico era desprezar a riqueza e o prazer, acreditando que o objetivo do homem é a felicidade, mas a felicidade que consiste na virtude, sem adornos materiais, encontrada na simplicidade semelhante à vida dos cães de rua.
A voz dos marginais
Essa proposição cala na alma o mais profundo dos risos ou dos pesares, quando se olha para os pobres de hoje. Vida cachorra tem essa ironia, expondo a dicção dos homens sem tato, a voz dos marginais.
Ler o livro é como ouvir os entrevistados de Gil Gomes. Ainda em Absolvição, há duas lapadas retóricas entrecortadas pelas frases refinadas e certeiras de Tolstoi. “todas as famílias felizes se parecem, as infelizes o são cada uma à sua maneira.”
O interessante é que há ali um jogo de contrastes. No lugar em que se espera a felicidade, há o conflito. O conflito se instala no ambiente da paz, no ‘aconchego do lar’. Já na segunda parte, quando a infelicidade seria traçada, com o personagem na cadeia, quem reina no local de crise é a harmonia. Uma felicidade possível, contrária à felicidade dita pequeno-burguesa.
Neste sentido, o livro de reis é um outdoor que mostra o disparate de valores entre os que têm posses, que podem ser canalhas tanto quanto os outros, mas que podem se proteger, e os que não têm, fios desencapados, largados à margem. Sugere o fosso entre os vira-latas e os de pedigree.
Reis, editor do blog Cativeiro Amoroso e Doméstico, é um jovem autor que vem surgindo devagar no fluxo da nova geração de escritores brasileiros. Nasceu em 1976 no Rio de Janeiro. Cursou Letras na Universidade Estadual (UERJ) e já havia publicado um livro de contos, John Fante trabalha no Esquimó (Caliban, 2008, 80 páginas).
Além disso, está em Paralelos - 17 contos da nova literatura brasileira (AGIR, 2004, 102 páginas), junto com revelações interessantes, que já se tornaram celebridades das letras, por um motivo ou outro, como Tatiana Salém-Levy, Antonia Pellegrino, Cecilia Giannetti e João Paulo Cuenca.
Mantra
A esses jovens escritores, vale perguntar: o que dizem? como dizem? por que dizem? No caso de reis, sua literatura quer se firmar como um contraponto ao cânone, como todo jovem escritor que demonstra ter talento. Resta saber se vai conseguir se sustentar, pois ainda não dá para se fazerem previsões. Mas é possível ler seu texto sem o prejuízo do bocejo.
Esta literatura que retrata a vida cachorra demonstra outra coisa importante. As normas armadas pelo Estado Democrático de Direito nem sempre (ou quase nunca) têm a ver com o espírito da vida prática de quem vive à margem. Esta vida é regida por outras baquetas.
Vida cachorra também pode ser um mantra para quem tem medo de palavrão. Leia o livro em voz alta, interprete, faça-se passar pelo desvairado e violento ser que confessa seus crimes, entre eles, o de viver como um chutável cão de quinta categoria.
Em Amor filial, há o exemplo do riso cínico da vida. “estudei um pouco. terminei o científico”, diz anacronicamente o narrador deste conto. Ele pode até acreditar que isso seja um diferencial, e pode até sê-lo no ambiente em que vive. Mas na sociedade contemporânea, até os cursos superiores estão banalizados, que dirá o ensino médio público (certamente o caso do confessor).
O conto em questão fala de um rapaz, ex-presidiário, que morava com a mãe e o irmão gêmeo que sofria de transtornos psicológicos. Só os três. O rapaz é quem narra. Sua narração é um exemplo de como o autor se apropria de outras técnicas, como a do cinema.
Num dos trechos, o narrador diz: “cheguei em casa tarde. meu irmão não estava. minha mãe preocupada. teu irmão saiu e não voltou ainda. pra que lado ele foi? perguntei aos moleques da rua.” Veja como o plano muda de dentro de casa para a rua num átimo. Não é invenção de reis, mas é uma síntese, em todo caso. É uma montagem.
Há também a paródia sutil do posicionamento do personagem de Grande sertão: veredas. A diferença é que, enquanto Riobaldo fala a um homem considerado doutor tanto pela importância social quanto pelo título talvez de médico (talvez o próprio Guimarães Rosa), os personagens de reis falam a um doutor pela força da autoridade, não pelo respeito que se tem, mas pelo medo tácito, pelo poder do outro.
Essa abordagem é ao mesmo uma paródia e apenas a tônica da realidade. As pessoas simples, de frente para um delegado, por mais reles e ignorante que este seja, por mais canino, elas não hesitarão em chamá-lo de doutor, porque não verão nele seu igual, mas seu superior.
O doutor somos nós
O que a literatura de reis tem a dizer? É isso. Ela sugere com bastante contundência os meandros da vida cachorra. Mais do que isso, ela expõe, escancara, grita, late, berra. Ela é um pequeno tratado da maldade cotidiana, da maldade imposta sobre o homem, que a aceita, que a toma como inseparável companheira, por não ter o que fazer, por não saber como fazer diferente.
Cabe aos personagens argumentar sem esperança, numa postura aberta, trazer a face da desgraça humana como um espelho, em que os dois lados da moeda aparecem: os vira-latas e os de pedigree. Tudo isso é feito de modo consciente, uma consciência puxada desde a epígrafe de Michel Foucault, conforme o trecho abaixo.
“a parrésia é uma forma de crítica tanto ao outro quanto a si mesmo, mas sempre numa situação em que o crítico encontra-se numa posição de inferioridade em relação ao interlocutor. o parrésico é sempre menos poderoso do que aquele a quem dirige a palavra. a parrésia vem “de baixo” e se dirige a quem está “em cima”.
Nesse sentido, não só os personagens, mas também o autor se coloca humildemente como um deles. E nós, os leitores, somos o doutor. Nós, a sociedade, somos quem está em cima. É uma provocação dos diabos. Aliás, Deus e o diabo na prosa de reis se encontram no mesmo nível gráfico, com menos poder de agilidade para o primeiro. “deus age devagar demais”, diz um dos personagens.
Bruteza
Dos 12 contos, um ou dois parecem não ter funcionado bem. Parecem ter fugido da tônica, como o Espírito natalino, em que um bandido vestido de Papai Noel deixa de matar a encomenda depois de conhecer o filho da vítima.
Há nesse conto um pathos incompatível com a vida canina proposta na espinha dorsal do livro. Tem pouca tensão e um desfecho frouxo. Em contrapartida, o conto Despejo oferece ao leitor fortes doses de ironia e bruteza humana. É narrado por uma senhora de 50 anos, analfabeta, moradora do Parque Felicidade, uma área ocupada ilegalmente.
A mulher foi despejada de sua casa, demolida pela Defesa Civil. Ela e sua neta (que fora abandonada pela mãe) ficaram sem teto. Nesse ínterim, “minha menina arruma um companheiro. o cachorro é pequeno, malhado. ela aperta o animalzinho. meu irmãozinho, vó. posso ficar com ele? fica.”
“vó. o que é. ele também nunca ficará sem casa. ah, é. por que? vou ser sempre a casinha dele. aquilo me deu um troço no peito, uma vontade de chorar. não sei bem direito por que.” Isso é cinismo do personagem. A velha sabe. E a situação toda é fruto do descaramento social e político. Viver é mesmo muito perigoso.
Fonte: http://leiturasdogiba.blogspot.com/2011/03/o-latido-da-prosa.html
Gilberto G. Pereira é jornalista e crítico literário em Goiás.
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