Resenha sobre livro Vida Cachorra

Sobre a obra Vida Cachorra de Mariel Reis

07/03/11

O que é um bom conto?

Está é uma questão que me intriga, e que deveras, considero necessária mediante a situação atual de nossa literatura universal, onde o romance é ícone do fracasso intelectual e cultural, o conto, em sua noção de limite, é o melhor meio que vejo para o exercício intelectual e estético de reflexão sobre a sociedade contemporânea, e, em si, a condição humana. Refletir sobre o conto é algo de que me ocupo, e encontrar bons contistas, assim como bons poetas, é uma raridade preciosa. Por isto, ler os contos do escritor e amigo Mariel Reis me causam muita alegria. Recentemente li sua pequena obra intitulada Vida Cachorra, e não me permito esquecer que tive o prazer de ler os originais antes de publicado. É um livro densamente equilibrado, tematicamente bem elaborado, e, segundo a linguagem do conto, perfeito. Talvez o termo perfeito seja um valor muito alto a ser atribuído a um livro e, porque não, presunçoso. No entanto, uso esse termo para indicar que a obra de Mariel Reis tem sua qualidade irrevogável, e se deve ao domínio que o escritor possui sobre a natureza do conto, demonstrando ter um conhecimento desta arte, que poucos, senão raros, têm.

É bastante raro ler um livro de contos e dizer que se divertiu com a leitura, ou, que o conto agradou, fez rir, chocou, refletir, ou mesmo, lembrar um tempo e outra história. Um conto para despertar tais sentimentos -, os quais surgem por um processo de identidade do leitor com o texto -, precisa ser bem escrito, um achado numa imensa floresta de livros e autores. E o livro Vida Cachorra casou-me estas sensações de prazer e reflexão, alguns contos me chocaram, outros eu dei gargalhada com a comicidade e ironia do texto, e houve aqueles sobre os quais debrucei meu pensamento e memória diante da verossimilhança com a realidade urbana, com histórias que ouvi, filmes que assisti, etc. Aí se encontra a razão de afirmar que o escritor domina com excelência a arte do conto, além de demonstrar ser um escritor ciente de seu ofício como escritor.

Isto me leva a pensar outra vez sobre o conto, e então me lembro do que escreveu Julio Cortázar no livro Valise de cronópio: “um bom conto é incisivo, mordente, sem trégua desde as primeiras frases”.

Mas o que define um conto?

Sinceramente, é incerto, se, considerar que há mais de trinta formas de escrever um conto, segundo a diversidade de gêneros dos quais o conto absorve a forma. Ainda assim, um conto caracteriza-se pela concisão e administração do tempo. Esta característica fundamental do conto encontra-se no livro Vida Cachorra de Mariel Reis. São contos muito bem concisos e de uma linguagem bem apurada, a ponto de nos chocar ou engraçar com a forma. Nessa mesma linha está o livro, Ainda Orangotangos, do escritor Paulo Scott.

Do livro dois contos: Transplante e Indigestão. A história do primeiro é sobre um homem que está para perder seu pai, o qual encontra-se internado num hospital; seu pai para viver precisa de um transplante de órgão, essa notícia, coloca o personagem principal em conflito o obrigando a tomar uma atitude cruel, mas, que do ponto do vista social, talvez seja justificável. O conto Indigestão trata da história de um trabalhador enganado por seu patrão que toma tudo dele, esposa, filhos, vida; inconformado, o personagem realiza sua vingança fantástica. Esta história fez-me lembrar o conto O bom amigo Batista do escritor Murilo Rubião, porque tanto Indigestão quanto O bom amigo Batista, tratam de uma amizade enganosa que se beneficia da ingenuidade a favor de si mesma, levando ao prejuízo do outro, ou, a sua morte. Entretanto, enquanto no conto Indigestão o personagem se vinga fantasticamente – este adjetivo não posso ignorar, pois a obra de Mariel caminha pelo realismo fantástico –, no O bom amigo Batista, o personagem defende o amigo, aceitando a condição de sua ingenuidade, ainda que, esta ingenuidade seja a morte do seu ego. Ambos os contos, Transplante e Indigestão, são histórias que pela crueza do relato, violência dos fatos, linguagem concisa, a forma do texto em linguagem minúscula, dinâmica e econômica, violenta por sua vez o leitor que no texto identifica a realidade do seu tempo e se fascina com a verossimilhança dos contos. Enfim, valeria que Vida Cachorra fosse um filme de vários olhares, o expectador – um outro leitor -, certamente, identificaria na imagem uma crítica, um deboche, uma ironia, de sua vida composta de outras vidas igualmente cachorras, num lugar onde cada um tem sua lei, onde cada um é um cão a devorar outros cães para não morrer de fome.

Vida Cachorra é um livro de contos maravilhosamente bem escritos, e Mariel Reis merece o reconhecimento presente de um escritor e contista por excelência, sei que ainda há muito que esperar de Mariel, mas já aviso que vale acompanhar a formação de sua obra. Acredito que este escritor terá o que contribuir para formação da nova literatura brasileira entre os novos escritores desta geração que está se construindo. Não é um autor midiático, mas é um ESCRITOR, e por essa razão, que julgo o devido merecimento prévio da leitura de sua obra que se mantém no fio da meada.

Anderson Fonseca é consultor literário, poeta, escritor e editor da Multifoco, selo Orfeu (Poesia).

http://andersonvlfonseca.wordpress.com/

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