Ao Modo de... Marcelino Freire
Ao modo de... explorará contos construídos à risca ou quase de escritores renomados brasileiros. Dessa vez Marcelino Freire, vencedor do Jabuti.
I
Ela está descabelada. Cinderela tresloucada das madrugadas. Sobe a escadaria dos apartamentos. Aperta o interfone. Diz o nome. São quantos? Quem paga? Interroga. Sábia empresária de si mesma. Ao terminar, toma um banho. Enxuga-se com a toalha, mortalha dos próprios sonhos. Recebe o dinheiro calada. Toca para o ponto de ônibus. Moradora da Baixada. Repleta de remorso e sono. Desgrenhada. As marcas no corpo. A fome de lobo. A boca do lixo. Os rapazes escrotos lhe perseguindo. Torce para chegar logo em casa. A mãe asmática. Simpatia, chá e nebulização. Ajoelha-se para o santo de devoção. Liga a televisão. Tiroteio, corrupção. É só o que são as notícias? Um ramo para Luísa. Prima. Exatamente como ela. Presente do namorado. Intelectual, esquerdista e frustrado. Apressado para os finalmente prometeu noivado. Não tem nem onde morrer, coitado. Namoro de portão. A lua no céu. Balão. Cantigas de São João. Por que não? Meu Deus, aquela que subia as escadas não pode ser mesmo eu, pondera. Ela singra as ruas como caravela, move-se na espuma escura derramada, quando transbordam as estrelas. O psicanalista às sextas. Quando o pecado mais se agita. O namorado não desconfia. Mãe doente, menina trabalhadora, gente de família. Não lhe pesam na cabeça as estripulias? As puladas de cerca? Faxina. Encera o chão. Na posição de Napoleão. Escuta gracinha. A mãe asmática repara. Nos cantos da parede, filha. A panela apita. O feijão. Ela uma rainha. Almeja. O desejo adeja no teto da cozinha. Borboleta cega. Quem nunca quis, atire a primeira pedra? A heroína sem nome, sem reclame, sem vez. Pergunta por que o destino a fez? Tremenda insensatez. Sem voz, sem veio, sem rei. Lei? Qual? A mãe tem fome. O que pode a moral? Ela some nos becos, nas praças, na marginal. Amanhã pensa direito. Pede logo a bufunfa. Espanta da caixola as perguntas. Junta-se a curriola. Cala-te, aconselha a colega de batente. Você não é filósofa.
II
Ela preparou a janta. Mexeu na panela amor, harmonia e esperança. Escolheu a música certa. Apontou a lembrança. Reparou na camisola. Cheiro de lavanda. As orquídeas na varanda. Compromisso de vida passada? Ele nunca se atrasa? Não esquece a data da primeira ciranda. Os corpos em trança. Na rua uma luz estanca. Perigo. A polícia com metrancas. Tiroteio com os bandidos. Ele não se cansa. Trabalha de domingo a domingo. Segurança. Corta o tomate para a salada. Retoma o devaneio. Amor feito às pressas nas escadas. A mãe cobrando o casamento. Ela não se esquecia de nada. A carne no ponto. A mesa forrada. Ele deve estar no ônibus. Olha o relógio. Corre para o banho. O noticiário é alarmante. Na janela espia a esquina. Fugidia. Ponto indivisível, cortina que os prédios lançam pela avenida. Ele nunca se atrasa. Rói as unhas. Espoca o tiro. Deve ser confronto. Se tivesse dinheiro, mudar-se-ia. Paris, Hong Kong, Toronto. Eh, vida. Na cabeça as dívidas. Amenizadas quando surge a praça, as luzes, os fogos. No céu e nos olhos. Uma tristeza. União que não frutifica, é praga? Remédios, garrafadas, feitiçaria. Se menino, João. Se menina, Maria. Aplicavam fé, praticavam todo o dia. Ele não liga. Nervosa, ela que na panela mexia amor, harmonia e esperança, troca os ingredientes. Indigente a mente ressalta: a traição, a dor e a cobrança. O doce vira amargo. Esvai-se a tolerância. O amor malvado chicoteia. Ciúme até da sombra alheia. Ela se deixou pegar na teia. Pássaro preso ao visgo. Ele não se esquece da data. Não se atrasa. Estará com alguma safada? Sabia do compromisso. Há semanas só falava nisso. Sentiu uma dor atrás do umbigo, a sensação de gelo e desapontamento. Ele não faria, faria? Ocorreu-lhe o pensamento. Não chegou ainda. A janta na cozinha. Minha mãe me dizia. O vento percorre a casa vazia. Ela, na janela, de prontidão. A lua alta. A música reclama da falta. Ela tão jovem, tão bonita. Melhor guardar as vasilhas. O tempo muda, chuva se aproxima. Ele nunca se atrasa. Repetia baixinho. Alisando o braço. Na ausência de carinho, tocou-se. Estremecia. A sensação pouco durou. Constatou - o amor também esfria.
Comentários