Cópia Fiel
Um amigo recentemente chegou da Europa. Encomendei-lhe vários livros. Solícito, não deixou de me atender. Procurando dividir sua experiência em terra estrangeira, me sugeriu que o Museu do Louvre está repleto de tesouros e não pode ser posto de lado em uma programação turística nas plagas francesas. Conversávamos soltamente quando o coloquei a par de uma teoria minha, desenvolvida ao longo dos anos, tendo como base o mercado de arte brasileiro, do qual sou profissional. E pelas observações que me propiciam, ao lidar com todo o tipo de suporte em que são executadas as pinturas, principal objeto de explanação em nosso diálogo.
O Museu do Louvre, meu caro, disse a ele, tem lá seus méritos. Mas algumas obras não estão mais lá. O que vemos são espectros daquilo que foram quando realizadas pelo artista. O mais são interferências de mãos de tantas nacionalidades dos restauradores que não adivinhamos qual pincelada pertence a quem, se ao pintor ou àquele que auxiliou para que o trabalho chegasse até nós. Ele crendo que menosprezava sua iniciativa em me por a par das novidades, compartilhando pontos de vistas, muitas das vezes comuns comigo; outras, não. Acabou por me repreender, aceitando que derivariam da inveja os meus argumentos, porque à época quando sua viagem ocorreu, não pude acompanhá-lo por motivos de trabalho. E toda minha frustração nasceria desse episódio.
Disse a ele que não. E como regulamos a mesma idade, invoquei um exemplo clássico. Imagine que um dos quadros que você admirou por longo tempo, fosse um homem. E tivesse sobre ele a idade respectiva, desde sua execução, que tomaríamos como a data de seu nascimento. Feito isso, acrescente rugas, pelancas e todo o traste em que a carne se transforma com a ação do tempo. Convoquei-o a lembrar do filme O Curioso Caso de Benjamin Button. Neste filme uma experiência similar ocorre com o rejuvenescimento do protagonista. Chegamos mesmo a duvidar, quando estamos na juventude da personagem, de que era o mesmo velho. E, ressaltei, o mesmo acontece com os nossos pais. Tinham determinada aparência quando mais novos e agora são como o vemos. Isto é mais doloroso para as divas do cinema. É certo que a indústria criada em torno do rejuvenescimento minimizou os efeitos do tempo com pílulas e cosméticos que pretendem retardar todo esse desgaste. Porém, as obras de arte não se beneficiam disso.
As esculturas não sofrem tanto com a passagem dos anos. O suporte não se desgasta tão facilmente. Portanto, quando na Europa, é mais certo estar-se diante do artista em obra desse ramo. Ali estará conservado o espírito do artista, porque quase intocado, não sofreu a intromissão das restaurações sucessivas. O que dizer da pintura? Resta nela algo do criador original? No filme, Cópia Fiel, estrelado por Juliette Binoche, trata-se de um assunto polêmico: a reprodução fidedigna de obras de arte. Como não vi o filme, li apenas a divulgação, creio que se aproxime de meus argumentos. Não vou tão longe, a ponto de pregar que cópias idênticas sejam postas em museus enquanto que as originais repousem em cofres.
A minha idéia é mais simples. Não menos cruel. Meu amigo me olhava com algum conforto, entendendo o lado para o qual a palestra estava direcionada. Como disse anteriormente, trabalho no mercado de arte, e, frequentemente nós lidamos com restaurações complicadíssimas, delicadas porque supõem a completa reformulação do trabalho. O fator mais grave é que muitas das vezes o artista está morto. Todo o trabalho é feito por profissional competentíssimo, mas que não é o pintor. Contudo, está ali, no ateliê de restauração, o chassi, a tela e tudo o mais. Quando temos de volta o quadro, ele está perfeito, reconstruído fielmente àquilo pensado pelo artista. A minha pergunta é a seguinte: é o mesmo quadro? Ali está o espírito do artista? Logo meu amigo saltou da cadeira e pensou na diva de sua viagem até a região francesa, La Gioconda. Louvou-lhe o quanto pode. E quando entendeu que uma pintura, que tenha mais de quinhentos anos, que sofreu inúmeras restaurações, não pode ser a obra-prima de Leonardo Da Vinci. Sim, o seu espectro. Um primoroso espectro pelo esforço de conservação empreendido por todos que a legaram a modernidade.
Minha teoria perturbou um tanto meu amigo. O bom senso acudiu-me, para despertá-lo do transe em que estava; ponderei de que eu não poderia ser tão extremo, acusando de que não há em toda superfície uma única pincelada do gênio renascentista. Isso seria perigoso, mas quisera compartilhar com ele um modo de olhar relativizador sobre os tesouros de nossa humanidade. Porque esta foi feita para se acabar e nós ainda relutamos. Isso lhe soou trágico, senão patético. Uma frase retirada de um desses livros milenaristas. Corrigi-me .Compartilhava com ele esse devaneio, porque os compradores de arte preferem um osso da mão de São João Batista, trazido por alguém de sua árvore genealógica do que a sua ressurreição ou mesmo sua clonagem. Só porque o osso pertencera a São João Batista, mesmo sem ter a certeza que este deixou descendentes ou que algum saqueador de túmulos de um desses muitos séculos não se aproveitou disso para fazer uma boa fortuna.
O Museu do Louvre, meu caro, disse a ele, tem lá seus méritos. Mas algumas obras não estão mais lá. O que vemos são espectros daquilo que foram quando realizadas pelo artista. O mais são interferências de mãos de tantas nacionalidades dos restauradores que não adivinhamos qual pincelada pertence a quem, se ao pintor ou àquele que auxiliou para que o trabalho chegasse até nós. Ele crendo que menosprezava sua iniciativa em me por a par das novidades, compartilhando pontos de vistas, muitas das vezes comuns comigo; outras, não. Acabou por me repreender, aceitando que derivariam da inveja os meus argumentos, porque à época quando sua viagem ocorreu, não pude acompanhá-lo por motivos de trabalho. E toda minha frustração nasceria desse episódio.
Disse a ele que não. E como regulamos a mesma idade, invoquei um exemplo clássico. Imagine que um dos quadros que você admirou por longo tempo, fosse um homem. E tivesse sobre ele a idade respectiva, desde sua execução, que tomaríamos como a data de seu nascimento. Feito isso, acrescente rugas, pelancas e todo o traste em que a carne se transforma com a ação do tempo. Convoquei-o a lembrar do filme O Curioso Caso de Benjamin Button. Neste filme uma experiência similar ocorre com o rejuvenescimento do protagonista. Chegamos mesmo a duvidar, quando estamos na juventude da personagem, de que era o mesmo velho. E, ressaltei, o mesmo acontece com os nossos pais. Tinham determinada aparência quando mais novos e agora são como o vemos. Isto é mais doloroso para as divas do cinema. É certo que a indústria criada em torno do rejuvenescimento minimizou os efeitos do tempo com pílulas e cosméticos que pretendem retardar todo esse desgaste. Porém, as obras de arte não se beneficiam disso.
As esculturas não sofrem tanto com a passagem dos anos. O suporte não se desgasta tão facilmente. Portanto, quando na Europa, é mais certo estar-se diante do artista em obra desse ramo. Ali estará conservado o espírito do artista, porque quase intocado, não sofreu a intromissão das restaurações sucessivas. O que dizer da pintura? Resta nela algo do criador original? No filme, Cópia Fiel, estrelado por Juliette Binoche, trata-se de um assunto polêmico: a reprodução fidedigna de obras de arte. Como não vi o filme, li apenas a divulgação, creio que se aproxime de meus argumentos. Não vou tão longe, a ponto de pregar que cópias idênticas sejam postas em museus enquanto que as originais repousem em cofres.
A minha idéia é mais simples. Não menos cruel. Meu amigo me olhava com algum conforto, entendendo o lado para o qual a palestra estava direcionada. Como disse anteriormente, trabalho no mercado de arte, e, frequentemente nós lidamos com restaurações complicadíssimas, delicadas porque supõem a completa reformulação do trabalho. O fator mais grave é que muitas das vezes o artista está morto. Todo o trabalho é feito por profissional competentíssimo, mas que não é o pintor. Contudo, está ali, no ateliê de restauração, o chassi, a tela e tudo o mais. Quando temos de volta o quadro, ele está perfeito, reconstruído fielmente àquilo pensado pelo artista. A minha pergunta é a seguinte: é o mesmo quadro? Ali está o espírito do artista? Logo meu amigo saltou da cadeira e pensou na diva de sua viagem até a região francesa, La Gioconda. Louvou-lhe o quanto pode. E quando entendeu que uma pintura, que tenha mais de quinhentos anos, que sofreu inúmeras restaurações, não pode ser a obra-prima de Leonardo Da Vinci. Sim, o seu espectro. Um primoroso espectro pelo esforço de conservação empreendido por todos que a legaram a modernidade.
Minha teoria perturbou um tanto meu amigo. O bom senso acudiu-me, para despertá-lo do transe em que estava; ponderei de que eu não poderia ser tão extremo, acusando de que não há em toda superfície uma única pincelada do gênio renascentista. Isso seria perigoso, mas quisera compartilhar com ele um modo de olhar relativizador sobre os tesouros de nossa humanidade. Porque esta foi feita para se acabar e nós ainda relutamos. Isso lhe soou trágico, senão patético. Uma frase retirada de um desses livros milenaristas. Corrigi-me .Compartilhava com ele esse devaneio, porque os compradores de arte preferem um osso da mão de São João Batista, trazido por alguém de sua árvore genealógica do que a sua ressurreição ou mesmo sua clonagem. Só porque o osso pertencera a São João Batista, mesmo sem ter a certeza que este deixou descendentes ou que algum saqueador de túmulos de um desses muitos séculos não se aproveitou disso para fazer uma boa fortuna.
Comentários
CÓPIA FIEL é de uma originalidade incrível. A ideia nunca tinha ocorrido a mim e talvez a milhares de pessoas.
Continue, além de escritor talentoso, você é um monstro de perspicácia.
Parabéns! Sua mãe do coração,
Dora Locatelli.