Violência
No caixa do supermercado Guanabara um diálogo improvável se trava à minha frente. Duas jovens conversam com um rapaz de trejeitos efeminados. Ele confessa que precisa arranjar um namorado e irá a uma boate conhecida para isso. Apoiado pelas duas jovens, que não encontram inconveniente nisso, alertam-no somente para o risco de doenças sexualmente transmissíveis, inclusive, a AIDS.
Ele não se faz de rogado. Apalpa um dos bolsos da calça e retira de lá a embalagem de preservativo. Passam as compras, pagam com o cartão, ensacam e seguem juntos para o lado de fora do mercado. Na minha frente, restam outras duas mulheres que entre si trocam mexericos, enquanto são atendidas pela caixa que se intromete: - Um homem bonito daqueles, veado! Um desperdício. Eu tenho um amigo gay, ele é tão fofinho. Meu marido nem desconfia. Um dia eu esfreguei aquilo na cara dele. E nada. As mulheres riram. Pagaram as compras e também se foram.
Na minha vez, a caixa tentou dar prosseguimento ao assunto, emendando que homem nenhum reagiria como o amigo gay. Não dei ouvidos. Cumpri o rito dos demais e fui embora para minha casa. Tudo isso me fez refletir longamente sobre a violência. Não apenas a mais objetiva, quando somos atingidos ou agredidos por pessoas ou objetos; todavia sobre essa outra, subjetiva, psicológica. A caixa com desejos de traição que seriam encobertos por um álibi perfeito – o homossexual. O marido nunca ligaria uma coisa a outra e se não fosse a aversão demonstrada pelo amigo gay, talvez o caso se prolongasse indefinidamente com maior comodidade para a operadora de caixa do mercado Guanabara.
Ela trataria o marido com indiferença, algumas vezes concederia um ou outro encontro amoroso, remoeria no íntimo nada sabe esse coitado. O marido, caso seja fiel, notaria a indiferença e procuraria contorná-la com conversas, passeios e presentes; se não, lucraria por reservar suas forças para os encontros fortuitos com a amante.
Embora julgando que ambos fossem inocentes, vitimados apenas pelas fantasias, por que não dialogarem sobre a realização delas? Por que não pleitearem a inclusão de uma terceira pessoa? Ou mesmo a dissolução da relação que não suportaria tal coisa? Talvez não seja o prazer que esteja em primeiro lugar, mas alguma coisa porca e vergonhosa que se quer impor ao outro, uma espécie de humilhação de uma natureza totalmente diversa. No caso da operadora de caixa, ela afirmava que amava o marido, aquela fugidinha não enlamearia em nada seus sentimentos. Portanto, apenas uma fantasia.
A violência sofrida pelo amigo gay deve ser levada em conta. A cena é desfavorável quando pensada. Ela nua diante de um amigo e confidente gay. Ele poderá até desejá-la possuir. Não achando resposta em seu corpo para aquele estímulo, sente-se frustrado e cresce o sentimento de inutilidade e inadequação. Ela forçosamente não reconhecerá que seus impulsos não a levaram a compartilhar de um folguedo sexual comum a ambos, porque poderiam estar em um quarto fazendo uso de brinquedos eróticos que propiciassem a penetração de ambos; não aceitará que a única intenção desenhada, era convertê-lo a força ao evangelho da heterossexualidade.
Primeiro pela afirmação de que outro homem reagiria se tivesse a seu alcance uma mulher nua para se satisfazer e não hesitaria em manter com ela uma relação sexual. E também a operadora de caixa se tem em alta conta. A estima que tem por si mesma não a permitiria, em hipótese alguma, que qualquer outro homem, percebendo a sua nudez, não se sentisse profundamente atraído e tentado a consumar com ela o que quer que fosse.
O marido, caso descobrisse, sentir-se-ia atingido em sua masculinidade ao ser trocado por um veado; ela tripudiaria sobre o marido cobrando dele com a ação cometida uma falta qualquer ou apenas dando vazão ao seu lado sádico, a operadora de caixa se regozijaria ao vê-lo perplexo e se a perplexidade se transformasse em atração poderiam consumar outras vezes atos mais bizarros, em que a posição de superioridade residisse nela como condutora da encenação sexual. Afinal, ele já fora humilhado e ela demonstrara que o que tem entre as pernas fora capaz de transformar um individuo que na concepção dela tem uma sexualidade hesitante e apenas um ato de força pode redirecioná-lo para o caminho certo.
O homossexual, castrado mais uma vez, poderá manter-se a distância de uma amiga assim que o violenta, ou, ressaltando a figura da mãe/pai recalcadas, escolher estar ao lado desta ainda para satisfazer uma natureza psicótica e aprisionada pela culpa; se este amigo gay não tiver resolvido consigo e sua consciência sobre o rumo de sua sexualidade. Se o tiver, sendo um individuo superior, aconselhará a amiga a propor ao marido as casas de encontros de casais ou práticas de agendamentos amorosos que a satisfaçam e evite constrangimentos como aquele passado pelos dois. Saí dali com inúmeras possibilidades na cabeça, todas a respeito de como a violência atravessa todas as nossas ações. E se não tomamos cuidado, acabamos ferindo aquilo que supomos amar.
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