Solidariedade

O escritor Eustáquio Gomes, depois de um AVC, está cego e mudo. Torço para a recuperação deste ser humano excelente e artista primoroso. Ele escreveu as linhas abaixo para o meu livro A Arte de Afinar o Silêncio, contos, ainda inédito:


A ARTE DE AFINAR O SILÊNCIO

Marques Rebelo fuma numa estação de trens e trava um diálogo com o jovem que se senta a seu lado: nada a estranhar, se o escritor não estivesse sendo velado naquela mesma manhã na Academia Brasileira de Letras. No interior de um bonde, Lima Barreto encontra Bento Santiago e estabelece com ele uma curiosa conversa sobre Capitu. O pintor Iberê Camargo, passeando pelo Botafogo, ouve de uma cigana que ele matará um homem.

Decidamente, este não é um livro comum. As histórias que o compõem não são nada vulgares. E o Rio que retratam é o Rio interior de Mariel Reis, um lugar onírico que impressiona pela concretude da linguagem com que é construído, feito de coisas reais, nada abstratas. Neste sentido, se seus êmulos são Lima Barreto e Marques Rebelo, em cuja linhagem pode ser colocado, a técnica de Mariel lembra Kafka quando trata o fantástico com a naturalidade de um texto realista.

Os contos curtos se agrupam em torno de um conto mais longo, “O labirinto”, que é o melhor realizado do livro e funciona como o centro de um mosaico onde entram comédias, tragédias, noticiários e entretenimento. Não por acaso o livro é estruturado como se fosse uma programação de TV, onde o conto central seria uma “novela das seis” escrita num estilo muito pouco “família”, mas antes com mão de mestre, lacônico, seco, de resto cínico e guiado por uma imaginação que vai às últimas consequências.

A riqueza da linguagem não é isenta de uma certa barbárie, aliás saudável, como também acontece em Lima Barreto. Mas isso é parte integrante da literatura sem floreios de Mariel Reis, inseparável de seu talento para as elipses e para a síntese, o que é muito bem-vindo num mundo saturado de palavras como é o nosso.


EUSTÁQUIO GOMES

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