O Embrulho




Ângelo olhou o céu sem nuvens. A claridade atravessava os galhos das árvores, os pássaros com uma plumagem tão bonita banhavam-se no lago do parque. O calor incentivava ao exercício físico ao ar livre. Muitas pessoas se exercitavam caminhando ou pedalando suas bicicletas. Outras levavam para passear seus filhos, incentivando para que aproveitassem a manhã de sol tão azul rara naquela época do ano.

Levava consigo um embrulho. Sentou-se em um dos muitos bancos espalhados pelo parque para descansar, ressentia-se do peso. Havia caminhado bastante pela cidade até parar naquela área de recreação. Não a tinha definido como seu ponto de chegada. As pernas o levaram para lá como por vontade própria, talvez precisasse ficar ao livre, libertando o pensamento da ação da noite anterior. Toda vez que lhe vinha à lembrança seu rosto contraía-se como se em algum lugar a vida doesse e ele temesse encontrá-la.


As meninas andavam em shorts pequenos, levando seus cães pela coleira. Outras brincavam de pegar entre as árvores, rindo sob o olhar cauteloso da mãe que conversava com uma amiga ou com outra mãe que acabara de conhecer ali mesmo no parque. Os namorados procuravam andar de mãos dadas, os olhares imantados não se dispunham a mirar outro ambiente que não a si mesmo. Os vendedores de sorvete anunciavam o novo sabor do verão. Era um dia normal, Ângelo não discordava disso, porque percebia os indícios de que tudo transcorria de maneira natural, mesmo para ele que desde a noite passada andava com o embrulho sem ter onde deixá-lo.

Talvez Ângelo não tivesse coragem para abandoná-lo no parque como fazem as senhorinhas com os filhotes de gatos que infestam o lugar.

A voz da mãe não desgrudava-se-lhe dos ouvidos.

-É um imprestável! Como era seu pai!Isso mesmo, um paria!.

Ele levava as mãos aos ouvidos tentando abafar a voz materna.

Recobrava-se dos pontapés quando menino. A mãe agigantada enxotando-lhe de casa.

-Arrume algum dinheiro, pois você só sabe comer. Já está na hora de colocar alguma coisa na mesa.

Ângelo apertava com raiva o embrulho. Dava cascudo na superfície como se a castigasse pelos pensamentos que lhe rondavam a cabeça. Cada vez doía mais o peso da noite anterior.

O quarto escuro.

-Ângelo venha cá. Porque seu pai está morto, você vai me fazer as vezes de homem.

Ele obedecia. Isto fazia com que sua carne estremecesse. As náuseas subiam-lhe a garganta em golfadas que não conseguia conter. Um ou outro passante se apiedava, aproximando-se, perguntando se passava mal. Ângelo desconversava. Andava para um outro banco como para ficar a sós novamente, sem interrupção.

-Ângelo meu filho veste uma coisa bonita hoje. Passe no meu quarto às dez. Tenho necessidade.

Ele não sabia mais como reagir à mãe.

-Você é fresco ou o quê?

A noite passada não suportou mais.

-Vou sair.

-Hoje, não.

-Vou sair quer você queira ou não.

A mão da mãe tapou-lhe a boca com uma tapa.

-Sou sua mãe. Me respeite. Hoje você é meu.

Ângelo não respondeu. Esperou às dez horas. Foi até a cozinha, pegou a faca de pão afiada e entrou na escuridão do quarto.

Saiu meia hora depois. Aliviado o suficiente para não ter a consciência culpada, levando nos braços a cabeça daquela medusa.

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