Kipling e a Serpente

A estação de trem repleta de indianos. Rudyard Kipling não mostra nenhum desconforto trajando o terno de casimira inglesa. Calça um par lustroso de sapatos de laca, a mala de papelão na mão direita, o bilhete da passagem examinado pelos olhos inquietos atrás do óculos. Deixaria Bombaim para se aventurar na casa da floresta para escrever um novo livro. Não tinha certeza sobre o que escreveria, mas isso não o incomodava, pelo contrário, sentia-se confortável. Era a primeira vez que não estabelecia regra nenhuma em uma viagem, não tivera tempo para esboçar um plano – isto contrariava seu temperamento metódico, mas prometeu a si mesmo que seria a última vez que uma coisa assim ocorreria.

Bandhavgah, chamava o bilheteiro. A multidão subia ao trem que apitava dando o sinal da partida.

A casa era modesta, pertencia a um funcionário do marajá, que vez por outra tomava o seu caminho com a família para descansar do serviço burocrático dos palácios. Tinha três quartos na parte superior, uma grande varanda que se emendava à sala de visitas e à biblioteca no térreo. O banheiro ficava do lado de fora da construção, distante cinqüenta metros, porém construído com esmero para a comodidade do usuário.

Kipling era um homem exigente com as instalações, reparava detalhes que se não estivessem de acordo com sua noção de bem-estar, rompia bruscamente o temperamento reservado para reclamar e abandonar o local tão rápido quanto havia chegado. Dessa vez não questionou quando se deparou com a construção oferecida pelo funcionário que se sentia honrado com o escritor tomar a sua casa como campo de meditação para suas histórias já famosas à época. O funcionário do marajá não cabia em si de orgulho, porque o escritor tinha escolhido sua cabana, referia-se assim a casa.


A linha férrea adentrava uma mata densa, serpenteando entre montanhas. O vagão imerso em um silêncio favorável permitia ao escritor ordenar as suas idéias, porque rascunhava o enredo da estória pretendida. O verde da floresta misturado às sombras causava uma forte impressão naqueles que se detinham sob o aspecto fechado das árvores, agrupadas como um pelotão soldados que montasse guarda sob o mistério que escondiam. A luz do dia tinha dificuldade em ultrapassar a densa capa vegetal, diminuindo o calor sentido na gare da estação.

Bangahavgah. A palavra tomou todo o pensamento de Kipling. Os tigres, atalhou alguém, esta região é infestada de tigres e serpentes. Não percebera que falara em voz alta o suficiente para ser escutado e esclarecido como um viajante que não soubesse bem o seu destino, consultando a si mesmo para adivinhar a região para onde se dispunha a ir. Lá é um lugar muito bonito, mas estranho.

O indiano que conversava com ele era gordo, a pele amarronzada, marcada por doença. Os olhos amarelos e as unhas arroxeadas indicavam que sofria de alguma moléstia grave.

Vou procurar um médico – esclareceu o indiano gordo – não me sinto bem desde a última estação. Não quero incomodá-lo com minhas queixas, mas se vai para este lugar tome bastante cuidado. Contam que é amaldiçoado.

Próxima parada, Rewa. Anunciava o bilheteiro. A locomotiva deslizava suave, sem dificuldade. A mata se descortinava para a visão dos passageiros. As árvores não se enfileiravam tão rente como antes, era possível ver a terra coberta por pequenas plantações. O som harmonioso do canto dos pássaros impressionava pela beleza e diversidade. A luz do dia penetrava através das copas das árvores: finas colunas que apoiassem o céu nos diversos pontos em que pousavam, expulsando as sombras para o fundo da mata.


Não se incomodou com o solavanco do movimento das máquinas. Viu através da janela o homem gordo afastar-se, auxiliado por um garoto que carregava suas malas.

Contam que é amaldiçoado, ecoaram as palavras daquele indiano supersticioso.

O rascunho contava agora com dez páginas. Distraía-se emendando no papel as idéias, rabiscava nas margens os nomes dos filhos. Desenhava tudo aquilo que imaginava existir nesse lugar: dos animais aos homens. Kipling se valia desse artifício desde jovem quando precisava escrever e a imaginação o traía. Não tinha certeza da validade desse artifício, mas funcionava bastante quando em apuros. Não o aconselhava a ninguém, temendo ser ridicularizado.


Agora mesmo desenhava no canto superior esquerdo da folha do caderno de anotações, uma serpente.

Ouviu a chamada do bilheteiro: Bandhavgah. A locomotiva desacelerava. Kipling arrumou-se para saltar, quando uma última vez, aquele pensamento reprimido, desprendeu-se das profundezas onde estava enterrado para alertá-lo novamente.

Chegou à casa. A noite já havia se abrigado no céu. Desfez as malas, pedindo que lhe preparassem o jantar. Dormiria logo. A casa contava com dois empregados que moravam nas redondezas: a cozinheira e o zelador que mantinham em ordem aquele pequeno mundo. A cozinheira cuidava da arrumação e limpeza dos cômodos; o zelador tomava conta do jardim, da grama, da cerca e das pragas que infestavam a construção. Reclamava dos cupins como alguém que tivesse ódio à invasão de uma horda de saqueadores. A cozinheira não falava, metida consigo mesma se ocupava apenas do que lhe ordenavam. O turno de trabalho dos dois começava cedo e terminava com a ceia quando os patrões estavam. Ou havia visitas.

Logo terminou a refeição. Dispensou os dois empregados, voltando para a parte de cima da casa. Colocou o pijama, leu o trecho de um romance, adormecendo. Os ruídos noturnos embalavam o sono do escritor.


As batidas na porta da cabana se fizeram ouvir. Cada vez mais fortes. Rudyard refez-se do susto, calçou as chinelas, colocando os óculos e muniu-se de coragem para averiguar quem àquela hora da manhã cismava em lhe fazer uma visita tão inoportuna.

O homem encapuzado, vestido como um frade reclamava abrigo.

- Posso passar esta noite em sua casa.

-Não o conheço.

-Senhor, está frio demais aqui fora.

Kipling via dois olhos brilhantes na escuridão do capuz, mas não conseguia divisar um rosto para uma orientação.

-Aqui, não. Busque pousada noutro lugar. Tome esse cobertor, fará passar o frio.

-Eu não insistiria, se o tempo não estivesse tão ruim.

-Não me faça repetir o que já havia dito. Aqui não há lugar.

O homem encapuzado afastou-se na direção da floresta, sumindo.

A noite seguinte repetiu-se o mesmo diálogo. Sempre com o mesmo desfecho.

Kipling já havia escrito mais que a metade do livro. Pretendia ir embora ao dia seguinte, aludiu durante o almoço sobre a aparição com os empregados que o ouviram com uma expressão de tédio.
Aquela noite o homem encapuzado bateu à porta do escritor. O mesmo diálogo ocorreu com pequenas variações das palavras trocadas, só que, desta vez, o estranho se recusava a retirar-se. Permaneceu parado impedindo que Kipling voltasse a deitar. Quando não adiantavam mais argumentos, o escritor decidiu-se pela grosseria de expulsá-lo a pontapés dali se sua porta. O homem deu um passo para trás evitando as palavras violentas arremessadas contra ele, deixando cair o traje escuro que lhe cobria o corpo, permitindo a visão de uma longa serpente como aquela desenhada no caderno de anotações.


-Senta-te. E me escuta.

Kipling passou mais uma semana na casa. Toda a noite escutava os relatos da serpente, reunindo-os todos sob o titulo: O Livro da Selva.

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