Ainda Uma História das Ruas

Sentiu a umidade no cobertor. Essa menina deve ter mijado. Embrutecido pelo cansaço, resolveu não fazer caso naquela noite. Dormiria. Quando amanhecesse, se levantaria para se banhar no chafariz do parque. Lavando as roupas, ralhando com a filha. À noite estava frio demais para se perder tempo com brigas. Não notou que a mulher havia se levantado, e, caso a percepção lhe ocorresse, não descartaria a idéia que tinha ido ao tapume se aliviar. Porque tinha a bexiga solta, custava a pegar no sono.

Quando adormeceu sonhou o sonho de todas as noites. E não seria diferente daquela vez. Nadava no antigo rio da infância, junto dos colegas de bairro. A felicidade daquele tempo sempre retornava como algo terno, envolvente. Era um sonho sem sobressaltos, ligeiro como nuvens fugidias em um céu de verão. Nesta noite, porém, percebeu uma diferença, porque não costumava ter pesadelos. O corpo se agitava. Debatia-se como se dormisse sobre uma cama de pregos. Agora ele corria por uma floresta, caía de um penhasco direto em um lago sulfúrico. Parecia derreter-se. Escutou um grito longínquo. Acorda homem! Acorda!

Retornava aos poucos. A consciência debatia-se em um corpo incendiado. Os gritos de desespero enchiam a madrugada. Não agüentando as dores, desmaiou. Antes dirigiu os olhos para onde dormia a filha, isto foi à última imagem que guardou na memória.

Agora era menino outra vez. Na beira do rio, saltando com os outros moleques na água barrenta e vermelha, rindo, olhando o céu azul rodeando a terra, aquela única conhecida dos seus olhos, estendida como em um varal imenso onde as nuvens secassem das lágrimas choradas na procissão dos homens que carregavam no andor Nossa Senhora. Ao lado seguia uma menina, sabia que a conhecia de algum lugar, era miúda, com olhos expressivos, apesar da magreza. Ela acenava, e, se perdia na multidão. Mesmo menino sentiu o coração pesado como se o azul daquele céu se transformasse em chumbo.

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