Capitu e Lima Barreto - Um Conto Sobre A Inveja
Naquela hora da manhã já era possível encontrá-lo no Bar Papagaio, embora costumasse tomar cedo o bonde para a cidade. O passeio à rua do Ouvidor era um hábito. Antes tornava obrigatória à passagem no bar para uma talagada de parati. Abria o ânimo, enchia-lhe de coragem para a visita que pensava em realizar, apesar de contrariado, ao seu rival, porque não gostava nada da idéia de encontrá-lo.
Ajeitou como pode as roupas amarfanhadas. Não saberia como explicar o estado lamentável de seu traje, mas não se importaria com isso. Às favas com a opinião alheia, bastava-se a si mesmo e não pretendia ir à casa de um consultor de moda para pedir-lhe sua impressão sobre sua maneira de vestir. A gravata não encontrava lugar, apertada como estava ao seu pescoço. Era como uma serpente que o estrangulasse. Castro o novo proprietário do bar, estranhou um bocado a farda àquela hora da manhã, pensou que Afonso estava metido em uma embrulhada como as muitas em que se costumava envolver e estivesse prometido à delegacia ou ao hospício. Serviu a dose de parati e se enfiou a observá-lo, distante, para não espantar a mosca – como se dizia.
Afonso colocou dois tostões sobre o balcão, deu com as mãos no ar e fez sinal ao bonde que cortava nesse instante a rua.
Subiu ao carro, sentando ao fundo, aonde o bilheteiro viera recolher o dinheiro, dando-lhe o tíquete de passagem. Não observou nenhum dos passageiros, ensimesmado, pensando em umas páginas que acabara de escrever e que não saíram como estimado, quando retornasse da cidade, se debruçaria novamente sobre elas até arrancar o que de fato podia conseguir. Quando percebeu à sua frente um homem cheio de modos, acompanhando um rapaz que não parava um minuto de tagarelar, relatando-lhe certo talento para a escrita, principalmente para a poesia, emendando na conversa uns fiapos de sonetos ruins. Decidiu prestar atenção para ver se o conhecia, mesmo que de vista, apesar de julgá-lo familiar. Não conhecia atinar onde mesmo tinha esbarrado com o sujeito.
O homem cheio de modos se impacientou, levantando a bengala para expulsar o rapaz do seu lado, brandia como se fosse golpeá-lo. O rapaz afastou-se indo para um banco mais à frente, não sem antes dirigir-lhe alguns nomes feios, não sem razão.
Afonso movido pela curiosidade tomou lugar no assento abandonado. A proximidade o fez reconhecer aquele homem, mas sentiu uma dor forte no estômago, a cabeça rodopiou, evidenciando um desmaio. Controlou-se a tempo, mas não tão de imediato que não fosse percebido pelo seu companheiro de viagem.
- O Senhor passa bem?
Afonso sorriu, agradecendo a preocupação. No bolso interior do paletó, amassado levava o livro de seu rival, repleto de anotações. Discretamente procurou retirar o volume do bolso para espiá-lo como para se certificar de um palpite insinuado por suas suspeitas. Leu encolhido o primeiro capitulo e salvo a circunstância parecia tê – lo vivenciado quase integralmente. Porque no livro a ação se passava em um bonde que subia para o Engenho Novo.
- O Senhor está pálido – emendou o cavalheiro – parece ter visto um fantasma.
Agora mesmo que Afonso desejava chegar logo para sua visita. Sabia que seu rival era um embusteiro. Toda aquela história de seu gênio era um complô para renegar-lhe o reconhecimento que merecia a ele, Afonso Henriques de Lima Barreto. Então, com o intuito de desmascarar o oponente de letras, resolveu dar trela à conversa do cavalheiro.
- Me chamo Afonso Henriques.
- Prazer, Bento Santiago. Advogado.
- Sou amanuense.
- Curioso, não. É uma forma de se ganhar a vida.
- Sr. Bento já li muito sobre o senhor.
- Na imprensa é claro! É famoso o meu escritório. A única coisa de que me lastimo é que me ocupo das desgraças familiares. Vara de família entende? Os entreveros domésticos, as separações, as partilhas e as traições – quando pronunciou esta palavra, tinha o olhar baixo, uma expressão baça e sem força no rosto.
- É lamentável realmente – ponderou Afonso – ainda mais quando essas questões tomam a proporção de escândalos, parando nos jornais, estacionando nas páginas policiais.
- Pior é quando vira matéria para alguns escritores galhofeiros! – insinuou maldosamente. – Isto sim me revolta. Eu mesmo tive uma briga judicial com tal sujeito, na juventude, que me tomou a minha história, escrevendo–a como uma invenção de sua cabeça e a dor de cabeça foi grande.
Afonso não acreditava nas palavras que ouvia. De fato era verdade, aquele reles livro não passava de uma longa reportagem sobre a vida de um homem desgraçado, enganado pela mulher. Não esperava a hora para encontrar seu rival, esfregaria contra ele as evidências, provaria por A mais B a fraude que este escritor era.
- Então como havia lhe dito, Afonso, não esse seu nome? Conforme havia dito na minha juventude me apaixonei por uma pequena que quase me desgraçou a vida. Sorte que não perdi o juízo.
- Capitu – Afonso falou em voz baixa.
- O que disse rapaz?
- Capitu.
-Então você também a conhece.
-Não. Não a conheço.
-Como sabe o nome daquela sonsa, desculpe-me o palavreado.
-Um palpite.
-Palpite? Não acredito. Ela tinha os olhos de ressaca. Alta, forte e cheia. Os cabelos, lindos cabelos, quando os escovei fui o homem mais feliz. Não poderia naquele tempo existir um homem mais feliz que eu. Na época, em minha casa, vivia um agregado : José Dias. Ele bem que me avisou, mas não dei ouvidos. Eu estava cego, a paixão cega, não é mesmo? Ele dizia que ela tinha uns olhos de cigana oblíqua e dissimulada.
O bonde sacolejava. Já se viam os prédios da cidade. O motorneiro gritava os pontos, os passageiros desciam apressados.
-É, fica no Campo de Sant’Anna – avisou Bento.- Foi mesmo um prazer, Afonso, não sei se nos encontraremos de novo, mas aqui está o meu cartão. Quando precisar se separar, pode me procurar. Acertaremos um bom honorário.
Afonso voltou a sentir o mal-estar. As mãos frias, a cabeça zonza e a tremedeira. De repente sua visão se turvou, encheu-se vultos brancos, cada um com uma voz distinta. O braço alguém o pressionava e fazia um garrote. A picada metálica lhe deu a certeza que estava sendo socorrido. Quando sua visão voltou ao normal, enxergou o Castro preocupado, sua irmã lamentando-se.
- Já a esta hora?! – reprovava a irmã. – se continuar por este caminho acabará morto, me ouviu, está me ouvindo.
Castro não estava mais agüentando o calor infernal, se recompôs, pondo um ponto final na balbúrdia toda, levando Afonso que estava caído para a cadeira próximo ao balcão.
- Lima eu não entendi nada. Caístes aí e danou a falar o nome de uma pequena, Capitu. Você vai me pagar, Machado, vai me pagar. Não é melhor tu desistires desta coisa toda? Eles são brancos, homem, nunca te deixarão entrar por aquela porta, mesmo que tenhas miolo.
Lima Barreto percebeu neste instante que tudo não passava de um delírio. Contudo, levou às mãos ao volume no bolso interno do paletó estragado, apertando contra si o livro como se enterrasse no peito uma faca.
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