Meu Encontro com Marques Rebelo




Neste dia resolvi tomar o trem para a Central do Brasil. E adiantei à minha mulher que não me aguardasse para o jantar, porque o expediente de meu trabalho iria até tarde. O fechamento do jornal sempre se estendia madrugada adentro, com muita discussão, desgastando todo homem santo que ali pisasse. O remédio era esticar depois do trabalho até o bar do outro lado da rua, tomar uma ou duas talagadas e depois seguir o rumo de casa.

Era isto o que me acontecia mais ou menos todos os dias. A novidade ficava por conta de uma briga ou outra por causa de futebol entre os fundamentalistas dos clubes do Fluminense e do Flamengo, sempre por causa da escalação do time, dos títulos do campeonato carioca que detinham. Ou um desentendimento de casal que ocorria com calorosas discussões sobre obrigações conjugais – a flexibilidade do sentimento masculino irrita a suscetibilidade feminina que não concebe como um homem pode querer sexo com uma mulher a quem não ama.

Tudo isso me passava pela cabeça pela manhã, quando cheguei à estação de trem. A primeira vez que andei nestes caixões de ferro foi com meu pai. Ele adorava a linha férrea, colecionava miniaturas de locomotivas, fizera provas um sem número de vezes para trabalhar na RFFA. O que conseguiu foi um cargo de bilheteiro no qual se aposentou com extrema satisfação. Na estação, sentado, fumando um cigarro, estava um homem baixo, cabelo a escovinha, parecendo um pequeno diabo: era Marques Rebelo. A minha ilustração literária não passava do que eu lia nas seções dos jornais, mas aquela figura inconfundível vitima dos traços ferinos dos caricaturistas, fumava calmamente seu cigarro naquela manhã modorrenta de subúrbio.

Simplesmente não atinava o porquê da presença de Rebelo naquele recanto, porque, para meu espanto, os jornais tinham noticiado, naquela mesma manhã, o falecimento do escritor. Portanto, não poderia se tratar de uma aparição, já que se desprendia do cigarro uma fumaceira densa, a roupa ordinária não tinha a alvura dos lençóis dos fantasmas e os fatos não concordavam, porque o jornal relatava que o velório se dava na ABL, com afluência de figuras importantes do cenário nacional, não seria possível que na hora de sua morte ele desfeiteasse o próprio funeral. Não me contive, consultei o meu relógio de pulso, estava parado. Notei que Marques trazia um pequeno relógio no pulso esquerdo, não me fiz de rogado.

- Com licença, pode me informar as horas?

Ele marcou bem o gesto para olhar o relógio, soltou um risinho, e me respondeu de maneira curta:

- Acabo de perceber que meu relógio esta quebrado. Está marcando o mesmo horário desde ontem. É engraçado, não é? Não adianta mesmo pressa nessa vida.

O dia clareava. O trem estava atrasado, informava o serviço de auto-falantes da estação. Surgiam os vendedores que desfilavam suas mercadorias de um lado a outro da gare. Os passageiros davam vazão às suas reclamações; comentavam o noticiário ou a novela ou o futebol.

Marques Rebelo permanecia impassível. Olhando para algum lugar dos trilhos, sem se dar conta das demais pessoas que lotavam a estação. O físico atarracado, mas definido confirmava que havia sido um desportista. Jogou boxe durante o período do exército, depois trocou de luta: brigava com as palavras através dos romances e textos veiculados na imprensa. Tinha sido por muito tempo cronista no jornal Última Hora onde escrevia um palmo de crônica todos os dias.

- Entregou a crônica de hoje? – perguntei tímido, com medo pela minha intromissão, interrompendo sua reflexão, desconectando-o do lugar que visitava, enquanto se mantinha silencioso atrás dos óculos.

- Não. Não entreguei nada ao jornal. Não me saiu nada, apenas um título: A Última Crônica. Bom título, não. Mas o danado é que o texto mesmo este não veio me visitar, temo que chegue tarde demais para ser escrito. Vou lhe confessar uma coisa: amanhã troco de identidade. Não sou de me abrir com um estranho, mas como mudarei de vida amanhã, não faz mal que alguém saiba. E mesmo que você fale alguma coisa para alguém, quem iria acreditar?

Nisto Marques Rebelo tinha razão.

Juntei a coragem que ainda havia dentro de mim e resolvi mostrar-lhe o jornal.

“Morre o escritor e imortal Marques Rebelo. O país perde um de seus artistas mais sensíveis, talvez um de seus maiores romancistas depois de Machado de Assis...”. A reportagem prosseguia nesse mesmo tom. Ele parecia incomodado com o modo como o entronizam ao lado do Bruxo do Cosme Velho.

- Essa gente não tem mesmo o que fazer. – resmungou – Machado deve estar se revirando no túmulo. Os jornalistas não param de blasfemar; é só o que sabem fazer.

Encorajado pela intimidade, resolvi perguntar por que ele havia abandonado o próprio velório. Ele parecia triste quando respondeu, porque seus olhos cobriram-se de uma névoa muito grande, permanecendo úmidos como se alguma recordação o visitasse.

- Enterro de escritor é chato pra burro, por isso decidi não ir.

- E se derem por sua falta por lá?

- Não se amole. Paguei a um sósia para me representar, enquanto dava umas voltas. Só me dei conta que precisava dar um passeio, quando cada um dos presentes ao meu velório desandou a ser um desfile de asneiras. Meus inimigos vinham perto dos meus ouvidos e me falavam barbaridades e como morto eu não podia replicar, se não espantava a todos. Morrer é um negócio chato mesmo, mas não há outro remédio. Enquanto os anjos não vierem me dar uma carona, vou ficando por aqui, olhando os subúrbios, relembrando minha vida, os amigos queridos, jogando conversa fora.

Eu já imaginava o que daria essa história no jornal. O dia em que conversei com Marques Rebelo, reproduziria tim tim por tim tim aquela conversa maluca e como prova material decidi pedir uma assinatura ao escritor, ele não negaria um autógrafo a um fã. Pediria que ele datasse o autógrafo para não restar dúvidas de que estava morto e zanzando pela cidade.

- Claro, posso dar o autógrafo. Dê-me papel e caneta.

Estava empolgado com o fato de ele estar assinando o papel. Quando me devolveu, procurei ler o que estava escrito, porém era um outro nome que estava ali. Protestei.

- É uma brincadeira de mau gosto, não acha? – disse mostrando para Marques Rebelo o papel assinado com o outro nome que não o dele.

- Não o fiz por mal. É para preservá-lo. Imagine se sabem que você anda por aí dando conversa para um morto? Você viraria motivo para chacota.

Os passageiros já se dispunham a deixar a estação. “Deve estar acontecendo alguma greve”. A paralisação do ramal – informava o serviço de auto-falantes – é devido a um acidente na ferrovia. O retardo será de mais vinte minutos. Muitos se dirigiam para as paradas dos ônibus. O atraso seria inevitável no trabalho. Minha reunião já estava perdida, decidi aguardar o tempo necessário até a normalização do funcionamento do meu ramal, porque tinha a inusitada companhia de um morto tão ilustre.

- É uma história triste aquela da cantora de rádio, não acha?

- Existem outras muito piores e mais tristes. E triste mesmo... – interrompeu a si mesmo como se censurasse. – Esquece isso rapaz, esquece isso de que sou escritor, me fala de futebol. Você vai ao Maracanã?

- Não, mas sou botafoguense.

Marques danou a falar dos timecos cariocas. Tive que interrompê-lo.

- O meu trem está chegando. Tenho que ir, mas foi um prazer.

- O prazer foi meu. E não diga por aí que tivemos esse encontro.

- Pode deixar.

-Tchau, então.

Marques Rebelo retornou àquela imobilidade. A distancia pareceria uma estátua, se não se percebesse a fumaça que saía do cigarro, onde aos poucos foi desaparecendo.

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