Crônica Tardia Sobre o Dia dos Pais

É por este caminho difícil que devemos andar. Não adianta retroceder, porque se constatou que a vida não é o que se esperava; as pessoas não são como se sonhava e a juventude é como o galho de uma árvore atingido pelo vento forte que o derrubará, trazendo consigo a decadência e a decadência costuma-se acompanhar de desespero. Ele não ganhava nada em me dizer essas coisas, sempre nas filas dos bancos, marcado por uma preocupação que não consentia em dividir comigo ou com meus irmãos. Ele prosseguia não que alardeasse honestidade, porque isso não poderia testemunhar para si próprio, porque nunca se apresentou ao tribunal de sua consciência com a inteireza que julgava necessária, mas transmitiu que por força era preciso que o erro se apresentasse, fosse qual fosse à conseqüência.

Costumava esquecer datas importantes, absorvido pelas inúmeras tarefas de trabalho, misturado que estava a tudo aquilo em seu escritório, lembrando de como poderia fazer para arranjar dinheiro para um irmão, como calçaria o filho mais velho, como socorreria a velha da esquina, não sem um travo de amargura por isso ainda existir no mundo, mas esquivando-se de lições a respeito, por lhe parecer claro que algum dia tropeçaria e seria cobrado por não ter sido o exemplo moral esperado, aguardado e desejado por todos. Nos almoços fora com a família, não era o mais animado, mas observava com inquietação todos os filhos reunidos, sabendo ser tarde para algumas considerações, apertava a mão de minha mãe como a lhe pedir desculpas por não ter sido atencioso como deveria ou simplesmente para ter a quem se agarrar no apagar das luzes, quando o medo vence a racionalidade e o que não queremos é estar sozinho.

É por este caminho que devemos andar, mas não me apontava caminho algum, precisava me dizer que construísse o meu próprio, que o dele até ali não tinha sido a promessa de felicidade que parecia, mas não poderia culpar a nenhum outro homem, que sempre almejou a honestidade, que a sujeira até o incomodava, mas que a higienização custaria caro se a implantássemos de fato. Talvez nem a si mesmo tivesse poupado se incumbido dessa missão. Não gostava de ser enganado, mas quando ocorria, procurava uma explicação para não crucificar ninguém, porque me dizia que todas as almas têm suas fraquezas. Lia as crônicas dos jornais com desprezo, porque eles não poderiam oferecer material diferente como os filmes, porque nos filmes nos idealizamos. A realidade não permite ao homem finalizar seu projeto de humanidade, me acenava quando eu esbravejava que poderia ser diferente.

Serei falho, mas deixo coisas aproveitáveis. Apontava a biblioteca, repleta dos livros que juntara toda a vida; indicava com os dedos o diário que cismava em escrever desde os quarenta anos como se algo novo pudesse ser acrescentado ao já vivido. É uma curiosidade especulativa sobre como conduzi a minha derrocada, porque mesmo que acumulemos vitórias, no final somos derrotados. Resta saber como nos conduziremos por esse caminho, porque há uma arte em cair, meu pai me asseverava quando esperava a morte em um hospital público. Existia uma sabedoria difícil, sem manual, selvagem acerca de como escolhia um modo para me deparar com as coisas. Não tinha as palavras corretas, como ele afirmava sempre, mas algumas palavras, porque mais a frente eu poderia encontrar verdades mais profundas e desprezá-las caso ele as denominasse corretas e mesmo nisso queria evitar que eu me decepcionasse.

Talvez seja difícil ser meu filho, me abordava, porque as respostas objetivas não esvaziam sua expectativa sobre a vida.

Quando meu pai morreu, constatei que se ele não fosse um sábio seria um louco, mas de uma loucura doce e sem esperança, mas que não me traiu quando lhe perguntei como era se fazer humano.

Comentários

Anônimo disse…
pungente e verdadeiro...

bravo!

Dutra
Unknown disse…
Mais um texto seu que terei que guardar comigo além dos dois livros.
Diego.

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