Carta-Crônica a Um Ex - Querido Autor

Algumas vezes a admiração por alguém pode desmoronar de um momento para o outro. Trata-se de coisa comum,porque quando se tem um apreço muito grande por um individuo costumamos isolá-lo em suas qualidades – fechando os olhos para as possíveis gaiatices do seu comportamento que constituem uma constelação de excentricidades interessantes e podem beirar uma galeria bizarra de acúmulo de status.

Nesta semana li em uma postagem de um individuo que estava no meu hall de ídolos e fiquei chocado. Ele era um escritor, depois aderiu a carreira de novelista, foi bem sucedido em ambas. O talento precoce desse autor o levou a publicar seu primeiro romance aos dezesseis anos, com a chancela de uma editora carioca que reunia intelectuais respeitáveis e conhecedores de boa literatura.

Mas parece que sua ascensão estragou completamente o humano que eu percebia em seus livros, talvez mesmo isso nem existisse, fosse uma projeção indevida sobre os narradores dos romances que eu lia no afã de encontrar pistas sobre como se formou aquela individualidade. Poderia mesmo ser uma ingenuidade minha, crer que o criador se pareça com sua obra em beleza – muitas das vezes, ignorava, que é das distorções mais cruéis é nascem as obras primas ou os bons livros.

Tudo isso me lembrava que precisava amadurecer. Mas não me afastava do pensamento que o engano dessa teoria poderia estar sendo planejado por ele, que com seus lampejos de genialidade, driblaria toda a situação e nos mostraria apenas aquele mesmo menino, nascido pobre, fecundado por sonhos que tão bem transpunha para o papel, encantando a todos que se deparavam com o universo de suas histórias fantásticas.

Não, eu não suspeitava que o menino estava desaparecido, para não dizer morto. Até ler a postagem, na qual constatei, com decepção, que o menino havia desaparecido. Restava no autor que eu admirava um esnobe, com afetações que traíam sua origem humilde, que em sua postagem não conseguia decidir para que casa deveria ir depois de um evento cultural, aqui, nessa cidade, refém da violência, da pobreza e de hipócritas.


O meu autor preferido, até então, desandou a falar da decoração dos ambientes em que gostava de estar, vendendo luxo aos olhos cobiçosos, colocando-se mesmo em risco em tempos de seqüestro. Pensei que não era possível, que aquele menino cuja sensibilidade me encantara em seus romances não poderia ter o desplante de fazer consigo mesmo – isto mesmo – consigo mesmo aquilo: atingir a si mesmo daquela maneira.

Quando antes atirava contra mesquinhez e hipocresia, paladino dos sem discurso, Robin Hood de si mesmo – desse eu me enternecia e sentia vibrar uma verdade grande, repleta de um humanismo das ruas, de quem captava as vibrações finas dos que pedem socorro, dos que não tem casa. Pode, para olhos e ouvidos desprevenidos, soar sua afirmação como um complemento de vitória, conhecendo-lhe os percalços de morador de pardieiros e depois vencedor na vida pública como autor de teledramaturgia, mas para muitos que conheceu e sobre quem escreveu não aprovariam sia atitude. Como eu também não aprovo.

Mas, afinal, a vida é dele, somente ele poderá conduzi-lá, angariando aquilo que quiser ou se livrando de peso para tornar a viagem mais leve e prazerosa, mas não tendo em conta aquilo de que se desfaz para prosseguir em seu percurso. As quatro casas não representam ofensa, porque são produtos do trabalho do autor em questão, do quanto lutou para tê-las, para apagar de trás de si o rastro de miséria que, talvez, o assombre e torture. O que dói é vê-lo alienado justamente por aquilo que o humanizava, dando-lhe o diferencial necessário para não estar cego no turbilhão da sordidez humana. Inventou para si mesmo esse outro, talvez este OUTRO tenha sido sempre aquele ELE, com apenas uma única diferença: a minha recusa em acreditar NESTE que agora toma seu lugar. Por optar em crer nest'outro dos livros. E, que repito, é uma ingenuidade maior.

Não ignoro que com o passar dos tempos não podemos manter uma mesmo nível de integridade, porque somos forçados a fingir, mentir, trair, a realizar acordos vergonhosos, tudo para que tenhamos uma ascensão social mínima, mas que seria podada ou impedida se fossemos incorruptíveis. Porque para todo contrato social, há uma espécie de prostituição que nos viola a essência, mas enquanto não existir uma alternativa para a sociedade, para o regime capitalista, apesar das tentativas de saída esforçadas por aqueles anteriores a nós.

Caro ex- autor ídolo de então, não venda baratos os seus sonhos, porque o final disso é uma amargura sem fim, recheada de uma solidão povoada por monstros morais e acusações da própria consciência que não lhe cobrará nada agora, sufocada que está pelo luxo, pela ostentação;mas que quando conseguir escapar desse estrangulamento, enviará uma promissória que criará dificuldades para o pagamento. Proteja-se de si mesmo, porque um de seus Eus está resguardado, encerrado em uma armadura poderosa, realizando a quixotesca aventura, de resgatar esse OUTRO perdido ou aprisionado no estômago ou intestino desse monstro. Esse EU não desistiu de arrancá-lo desse cárcere e projetá-lo para liberdade.

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