A Caderneta


Para Márcio-André


Francis Ponge estava misturado àquela luz matinal, quase não podendo ser percebido entre as folhagens do jardim, por onde costumava passear.

Levava consigo uma caderneta onde tinha por hábito anotar os pensamentos que lhe ocorriam durante a caminhada, refletindo calmamente sobre a natureza ao redor, levando para o seu interior o concerto do mundo, onde sobrava em cada coisa música, intenção e palavra.

Não distinguia isso claramente, porque pensava através das palavras que pousavam suavemente sobre a folha, discorrendo sobre o regato que corria adiante, sobre a rede de sombras tecidas pelos galhos violentados pela luz solar e a súbita rebeldia com que o vento alardeava sua passagem pelas aléias de flores, tombando-as como pisoteadas por um exército.

Ponge se comovia diariamente com a natureza que não se permitia enquadrar sob as leis da física, da química e biologia, arrependida por ter descido aos homens desta forma, abandonando as razões pitagóricas, rendidas em poemas que pudessem revelá-la em sua volúpia discreta.

Apertava os olhos quando escrevia em sua caligrafia miúda o relatório das vidas minúsculas, esforçando-se por não trai-las em sua mensagem – caso possuíssem alguma.

A caderneta se enchia dos garranchos, com trechos repletos de setas indicando aonde deveriam estar ligados os retalhos quando se organizasse o poema para o futuro livro – que ainda estava longe, porque lhe era difícil decidir o material com que trabalharia e somado a isto, andara lendo poetas americanos, invejando os versos, decidindo que mudaria a forma de sua composição. Não havia nada de errado em seu modo de arranjar a forma de seus poemas, mesmo que parecesse verbete de um dicionário criado por ele e para ele como um menino que se metesse em aventuras de catalogar o mundo à sua maneira. Francis Ponge não atribuía a isso importância, mas queria alterar o comportamento gráfico de seus pensamentos na folha em branco, sulcando um rio sinuoso, no curso de sua criação.


Reclamava em voz alta que não pareceria com T.S. Eliot nunca se não acomodasse os versos daquele modo, não ligava quando no ônibus lhe pegavam a recitar certos poemas do autor como para capturar o ritmo, para se impregnar desta música desconhecida aos seus ouvidos, que antes classificaria como bárbara, mas podia senti-la bem, pulsando em sua têmpora, atravessando-lhe as mãos que marcavam com pequenos movimentos a acentuação silábica dos versos brancos do autor inglês.

Sentou-se em um banco do jardim, coberto com uma pequena marquise branca, coçava a cabeça com a caneta como se isto pudesse devolver-lhe a consciência interrompida pela algazarra das crianças em piquenique no parque com sua governanta.

Isto o aborreceu, mas não o desanimou. A manhã estava esplendorosa, as flores desprendiam um aroma ímpar e suas idéias não cessavam, mesmo que certo tremor em sua perna direita atrapalhasse suas caminhadas.


A caderneta descansava sobre a coxa direita, exatamente a perna do tremor, olhava intensamente as crianças que brincavam sem direção, quando percebeu que uma moça lhe sorria, também misturada à luminosidade, translúcida.

A moça estendeu-lhe os braços, Ponge constrangido, porque era uma natureza tímida, não respondeu imediatamente o gesto, parecia sentir que se desintegraria se a tocasse.

Não tardou para que a caderneta permanecesse sozinha naquele banco.

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