Conto de Mariel Reis

Matrícula

1. Meu avô, comerciante, com razoável nível de escolaridade, referia-se à escola como um balcão de ensino. Parecia desmerecê-la em seu comentário, o que não era verdade. A seu tempo e lugar geográfico, as escolas públicas eram raras ou mesmo inexistentes. As classes mais abastadas, em geral os negociantes, matriculavam seus filhos em instituições particulares administradas por uma irmandade religiosa ligada à Igreja Católica cujos proventos cobrados pela educação revertiam-se em obras para os mais pobres e à própria igreja.

2. Estávamos os dois, numa madrugada fria, em uma fila interminável para a matrícula estudantil, sentados em cadeiras de praia e conversávamos sobre a necessidade de me desasnar. Levávamos uma garrafa térmica com café, uma lancheira com sanduíches, preparados na véspera e um livro lido por ele em todo lugar cujo assunto não era dividido comigo -, ocupado por revistas em quadrinhos apropriadas à minha idade. Ele me olha comprido e, interrompendo minha leitura, tasca a pergunta: “Não é, pequeno, uma violência a escola?”.

3. A minha escola primária era acanhada, com um retalho de pátio. O uniforme pinicava e lá uma coisa errada: todos pareciam deprimidos. As primeiras letras aprendidas em casa, ministradas por meu avô. Sempre severo, sem tolerância com o erro. A cartilha me entrou toda no cérebro, acompanhada da tabuada, com rapidez. Evitava altercações com meu educador que, toda vez, me punia com o oitão da parede. Sentado em banco alto, repetia toda a lição perdida. Meu avô, com o passar do tempo, suavizara-se, bania de si o travo amargurado da disciplina jesuítica.

4. “Então, pequeno, não é uma violência?” Repetia a pergunta. Amanhecia. Os portões da escola fechados, embora um ou outro funcionário, desembarcado da condução, se conduzisse para o desjejum na padaria quase defronte. O livrinho lido por meu avô parecia tê-lo reformado quanto a violência da educação recebida nos bancos escolares. Parecia odiá-la. Serviu-lhe durante muito tempo, não negava, essa educação, mas o destempero das violações e das imposições sofridas para a correção do espírito tornava o educandário um calabouço ou coisa pior.

5. Um menino lerdo de sono alegrava-se com a retirada das correntes do portão. A escola abria e a fila agitava-se. As cadeiras de armar recolhidas sob a vigilância do sol forte da manhã - dissipava o resto de trevas. “Aquele ali parece se comprazer com o torniquete que levará”, disse meu avô, sombrio. Olhava meu único documento – minha certidão de nascimento; uma embalagem com três pequenas fotografias tiradas no lambe-lambe. Subia-me um discreto otimismo, tomando meu rosto.

6. Comemos os sanduíches e tomamos o café. “Não me parece disposto a largar de mão a besteira, não é, pequeno?”, ele indagava. Como largar de mão a besteira? A ideia se me meteu irremediável à cabeça, nem por ferro parecia possível tirá-la de lá. “É o último apelo que lhe faço antes da forca…”, anunciou. E já o patíbulo. Não me convencia da execução ou da tortura. Diante da secretaria, com a papelada em mãos, quase na minha vez, o menino à minha frente parecia matriculado num internato, mostrava-se abatido por perder a infância entre árvores mortas e sem frutos – as carteiras e cadeiras – do que aproveitá-la entre a sombra fresca e o sumarento das frutas.


7. E diante do verdugo, em minha imolação, titubeei; entretanto me foi impossível. Os olhos de meu algoz tão verdes, uns olhos de verde-mar, submergiram meu espírito para a cidade dos afogados...Ó Nossa Senhora dos Afogados, gemi contrito. Meu avô resignou-se quanto a minha escolha, observando nossa interlocutora de voz suave e gestos pausados que explicava o objetivo da instituição nela personificada. “Pode ser que o diabo não esteja mais por aqui, pequeno”, pôs as mãos em meus ombros. “Ou que ele, em suas artimanhas, tenha ficado mais bonito”, completou. “Ainda há tempo…”. 

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

O caso Alexandre Soares Silva

Iberê

Duas Palavras