Apenas aos bons - e somente a eles
1.
Daniel Piza, jornalista, morreu aos 41 anos com um AVC. Sofri um AVC
aos 37, não morri, mas fui advertido. A preocupação com a morte
sempre ocupou meu espírito, sem obsessão, mas com seriedade. E a
retomo, mesmo em meio a grande alegria, como uma pausa obrigatória
em uma euforia para me lembrar de que tudo é passageiro, sem que a
obrigação em reconhecê-lo estrague um prazer usufruído. Releio
Mistérios da Literatura, de Piza, sobre a trajetória
afetivo-crítica de suas leituras e me deparo, na primeira narrativa,
sobre Poe, com assertivas sobre a morte repletas de crueza como a
mostrar o homem lúcido, atento às artimanhas psicológicas que
criam saídas para a morte como o salto para uma vida extracorpórea
ou uma existência ditosa em uma dimensão menos miserável. Assevera
tudo isso enquanto relembra a infância e como lhe caiu nas mãos -
aos 14 anos - o autor de Ligéia, pontua, com maturidade, as
idiossincrasias classificadas como pueris acerca da morte e a
sobrevivência a ela.
2. Se Piza, sem esperança, não levava em
conta uma existência após a morte, não posso dizer o mesmo de mim.
Ás vezes hesito em minha convicção, mas a revisito - criticamente
- e me pergunto se não é egoísmo ou vaidade ambicioná-la - a
imortalidade. E cercado por incessante dúvida, opto por um projeto
modesto, fixar-me na memória de alguns mais queridos como
contrapartida a imortalidade. Em uma entrevista recente, o escritor
Flavio Izhaki afirmou, generoso, que eu era uma figura marcante e não
necessitaria ter me tornado um escritor para ter um canto na memória
alheia. Fiquei emocionado. À menção somou a lembrança de João
Ratz. E como não sou bobo, faço a lição de casa: escrevo. Se o
que escrevo resistir, ótimo; se não, também, porque o veredito de
Izhaki me consolou, mesmo com o avanço do desaparecimento. Não
tenho pressa nenhuma para vagabundear no Reino dos Céus, mas
gostaria do emprego de relações-públicas de Deus, com expedição
de documentos e toda balbúrdia.
3.Dizem que o inferno é barulhento.
Não acredito. Nunca me importei em saber a biografia do inferno -
não a do Diabo propalada pelos quatro cantos como uma história de
ciúme. Sempre me pareceu o mito de Caim e Abel acrescido de forças.
O Céu é que deve ser uma balbúrdia como uma estação rodoviária
ou ferroviária ou um shopping de virtudes ou um spa luxuoso - mas
espartano - com diversões, sim; e admoestações quanto a conduta
nociva com aulas de etiqueta e postura para o meeting espiritual, com
assessores rigorosos. Também pode não existir nada por lá seja lá
onde for lá, né? Estou preparado para a decepção, coisa para a
qual a maioria dos religiosos - ortodoxos ou não - é impensável.
E muitos qualificam isso como uma rachadura em minha fé. Golpeio:"É
minha fresta". Se não for nada do que imagino, valeu todo
esforço empreendido em imaginá-lo - ao céu - e a Cristo, a criação
mais sublime. Um dia, em conversa com Enokibara, apontei feliz mesmo
que Cristo não tivesse existido, a força dos milhares de
pensamentos o teria plasmado, tornando-o real.
4. Em um poema de
minha autoria, intitulado Contrato, faço minha proposta a Deus para
a programação de minha partida aos 77 anos. Não desejo ter uma
morte violenta ou a inutilidade com longo sofrimento ou a subtração
brusca. Embora saiba que não é possível adivinhar como será a
morte de um homem, sempre, em minha reflexão, tenho a impressão de
que minha morte será tranquila, sem sobressaltos. Verei meus netos,
amarei - ainda - minha esposa. Ah, a minha esposa... O homem é
egoísta, mas como gostaria de partir juntamente com ela, ter alguém
com quem cruzar o corredor escuro, de mãos enlaçadas, como sói
acontecer com os bons - e apenas a eles.
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