Volte ao trabalho, você não ganha para fazer perguntas

 ‘Comecei a rabiscar histórias. Curtas, é verdade. Ingênuas. Dei o primeiro passo para o abismo, porque a vertigem, de quando se começa a escrever, é inevitável. E constante. Repetir-se-ia indefinidamente. Toda vez que me sentasse diante da folha em branco, ou da máquina de escrever, e, agora mesmo, diante do computador, ela se repetiria. Um prazer insidioso, marginal e perigoso. Parecido com ficar nu, a primeira vez, com a namorada. Em vez da vergonha, a compulsão por tirar a roupa mais vezes. Escrevia, escrevia em todo tipo de papel que encontrasse. O açougueiro passou a ser meu principal fornecedor. Comprava carne para uma vizinha. Ele a embrulhava, generosamente. Quando entregava a mercadoria, pedia o papel do embrulho, retirado cuidadosamente pela proprietária da carne. Eu o desamassava. Cortava-o em pedaços menores, confeccionando blocos. Precariamente, me tornava um escritor’




A inveja é uma merda. Lia em um adesivo de carros nos anos oitenta. Nessa época, para defender alguns trocados carregava sacolas de compras no antigo supermercado Disco cujo reclame o apontava como o caminho certo. E aos meus doze anos recebia pelos serviços prestados os mais diversos pagamentos: de dinheiro a livros. O dinheiro rapidamente desaparecia. Transformava-se em compras de mantimentos. Minha família era muito pobre. Os livros, não. Juntavam-se aos montes em uma estante velha, encostada no quintal. Ali, comecei a minha disciplina da fome. Ernest Hemingway deveria conhecê-la bem e só muito tempo depois é que li, em um dos seus inúmeros livros, a referência a experiência em Paris, na década de vinte. A minha Paris era o bairro de Pavuna, e a minha fome menos glamorosa. A disciplina, contudo, férrea. E quando a fome apertava e não havia dinheiro para a compra de alimentos, eu apanhava a garrafa de água da geladeira, escolhia um dos títulos da velha estante e me refugiava nas páginas dos livros. A minha poltrona de leitura era uma cadeira de praia de madeira. Protegido pela sombra da mangueira do quintal esquecia a minha desgraça e dialogava com os escritores. Aprendi muito durante aquele período de silêncio, exílio e astúcia. E James Joyce ainda não me era familiar.

Os escritores me pareciam deuses. Dispunham de um mundo. Uma arquitetura cosida de ferro e de bruma. Eu os invejava. Lia os contos de Herman Hesse e me comovia. Um deles tratava de uma flauta de osso dada a um menino por seu pai. Quando tinha fome lia. O que era um passatempo ocupou todo o meu espírito. Lia, agora, quando tinha fome ou não. Parado, caminhando, nas filas do ponto de ônibus, na condução, para a namorada e os amigos, dividia aquele novo mundo em que me evadia. A minha inveja crescia. Comecei a rabiscar histórias. Curtas, é verdade. Ingênuas. Dei o primeiro passo para o abismo, porque a vertigem, de quando se começa a escrever, é inevitável. E constante. Repetir-se-ia indefinidamente. Toda vez que me sentasse diante da folha em branco, ou da máquina de escrever, e, agora mesmo, diante do computador, ela se repetiria. Um prazer insidioso, marginal e perigoso. Parecido com ficar nu, a primeira vez, com a namorada. Em vez da vergonha, a compulsão por tirar a roupa mais vezes. Escrevia, escrevia em todo tipo de papel que encontrasse. O açougueiro passou a ser meu principal fornecedor. Comprava carne para uma vizinha. Ele a embrulhava, generosamente. Quando entregava a mercadoria, pedia o papel do embrulho, retirado cuidadosamente pela proprietária da carne. Eu o desamassava. Cortava-o em pedaços menores, confeccionando blocos. Precariamente, me tornava um escritor, alheio a consciência da minha própria formação.

Venci concursos promovidos pela entidade dos comerciários da região. Conheci outros escritores. Li novos livros. Associei-me a biblioteca popular. Preguei um lema, em minha bancada de escrita, que não lembro mais a quem pertencia “Entre duas palavras, escolha sempre a mais curta e a de mais fácil expressão”. Não me recordo se a citação correspondia na íntegra ao que fora dito pelo indivíduo dono da frase, seja lá quem for ele. A editora Brasiliense talvez tenha sido a minha descoberta mais importante. O Pão Nu, O Careta, O Diabo No Corpo, Autobiografia Precoce, Escarcéu dos Corpos, Whitman, Caio Fernando Abreu, Marcelo Rubens Paiva, entre outros. Gente que sabia escrever. Uns mais que os outros. Indaguei sobre as diferenças. Por que cada escritor tinha uma maneira diferente de escrever? Nos meus dezesseis anos, toda a minha ingenuidade caiu por terra. Arrumei trabalho numa pequena editora de subúrbio. E os escritores não eram tão escritores. Alguns eram. Poucos, mas existiam. Passei à revisão dos textos, apesar de toda a desconfiança devido a minha idade e ao desleixo com minha correspondência pessoal com erros de concordância e outras atrocidades. Fiquei sob a supervisão de um sujeito de Pernambuco que aos poucos superava suas suspeitas sobre meu caráter e me ensinava o serviço. O editor tinha longas conversas com os autores. Eu espiava de rabo de olho. Espichava os ouvidos. E tomava bronca por estar desconcentrado.

Vi certa vez um original cheio de emendas, com indicações de corte e substituição de parágrafos. Perguntei o aquilo significava ao meu encarregado. Ele riu. “Volte ao serviço. Você não ganha para fazer perguntas.”



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A Companhia das Letras era o paraíso das editoras. Pelo menos há alguns anos. Quando a safra de novos escritores ingressou nela. Todos, sem exceção, com um texto quase impecável. A minha desconfiança disparou. Acompanhei muitos deles em editoras menores e se não eram incompetentes, não eram também precoces. O que me parecia positivo. E a cada autor publicado, inculcava com o upgrade. Atletas de bom rendimento que, através muito treino poderiam se tornar de ponta, repentinamente são transformados em gigantes. Em literatura não há exames antidoping, nem acusações de uso de anabolizantes. Eu me sentia um fraco, porque meus adversários pareciam correr com pernas biônicas. Comecei a ver o que tinha em comum a todos eles, na casa editorial em que estavam. E descobri os esteróides que os tornavam invencíveis: Márcia Copola, preparadora de textos. De cada dez livros lançados, onze tinham a sua chancela. A minha pergunta é a seguinte: até onde um autor assim é talentoso? O que representa a parcela de seu talento e o que é acrescido ao seu trabalho numa parceria crítico-criativo? É melhor ficar quieto e seguir o velho conselho, voltar ao trabalho e não fazer perguntas. É claro, eles não me enganam mais.

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