Por que Pero Vaz de Caminha não tomou cauim?
Para Anderson Fonseca, o crítico
Professoral
(O douto ensaísta
discorre sobre a historiografia do cauim)
Longe de representar a tragédia instalada
nas principais reservas indígenas, o consumo de bebidas fermentadas já possuiu
outro significado, escapando ao rótulo de
problema social, crescente na maioria das tribos em que o alcoolismo e o suicídio fazem parte de
uma estatística estarrecedora, fornecendo dados à pesquisa de desagregação de
populações nativas. O consumo de bebidas fermentadas, antes de sua perversão
através do contato com a população européia, estava integrado ao sistema
ritualístico dos índios. A bebida era o cauim. Descrita como uma beberagem
densa e clara, extraída da mandioca. Os nativos tinham tanta preferência por
sua bebida que o episodio descrito do por Pero Vaz de Caminha em sua Carta não pode ser ignorado: “trouxeram-lhes vinho numa taça; mal lhe
puseram a boca, não gostaram nada, nem quiseram mais”.
As Cauinagens,
como eram conhecidas as festas ritualísticas que antecediam ao banquete das
nações indígenas do litoral do país, chocavam os europeus, principalmente
àqueles pertencentes ao clero. O jesuíta José de Anchieta se opunha ao consumo
e a feitura, porque lhe causava asco o preparo da bebida que levava em sua
receita baba de moça, literalmente. Descreveu
o fabrico da seguinte maneira: “este
vinho fazem as mulheres, e depois de cozidas as raízes ou o milho, o mastigam
porque com isso dizem que lhe dão mais gosto e o fazem ferver mais”. A
bebida, condenada pelos colonizadores, parte do cotidiano cerimonial,
emprestava à imagem do nativo a figura do possesso.
A oposição do clero em relação ao seu consumo está diretamente ligada à
instituição da Inquisição, que
atemorizava a todos com seus manuais de conduta. Nele a feitiçaria era vista
como heresia. E a missão principal dos jesuítas era a salvação das almas.
Propositivo
(O douto ensaísta, de
birra, culpa Pero Vaz de Caminha por não ter aproveitado a festa e ficado
doidão)
O ato inaugural da literatura brasileira se
deve a carta do escrivão da esquadra de Cabral, Pero Vaz de Caminha. O caráter
documental e realístico da descrição da riqueza da nova terra antecipará um modus operandi que impregnará toda a
literatura e determinará sua área de atuação e sua relação com objeto. O gérmen
do Naturalismo/ Realismo encontra-se
ali expressado, ainda que a ele não esteja atribuído o nominativo. Entretanto,
Pero Vaz de Caminha, um europeu, ainda que a Europa veja Portugal com maus
olhos, antecipava em si mesmo aquilo que seria desdobrado por seus
conterrâneos. A antevisão de Caminha, resultado do derivativo geo-biológico, permitiu a ele o acesso
ao procedimento que marcaria dali em
diante a narrativa de um modo geral. Na Carta,
embora o caráter documentalista, há laivos de uma subjetividade que se escapa,
para não afogar-se; e que não pode dar a si mesma a licença poética necessária
para colorir o Brasil. Embora, em seu
delicioso esforço, as vergonhas das indiazinhas baguncem o coreto de sua
Majestade.
(O douto ensaísta depois
de pirado na batatinha, enleado sobre clivagens e que tais, tenta largar o
delírio)
No entanto, a literatura brasileira não
herdou de seu fundador o borogodó, o jogo de cintura e a malandragem,
excetuando-se a alguns autores nacionais. Isto parece ficou reprimido, trancado
em alguma gaveta do nosso inconsciente e a coragem para encarar de frente as
vergonhas das moçoilas em flor ficou soterrada pelo manual de boas maneiras
européias, importado com a gente careta que desembarcou nas terras de Vera Cruz
e usurpou o discurso daqueles que estavam por aqui e não vestiam tanta roupa.
Oswald de Andrade, talvez o último autor a encarnar esse estado de espírito
sacana, representou muito bem o dilema em Erro
de Português:
Quando o português chegou
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
Debaixo duma bruta chuva
Vestiu o índio
Que pena!Fosse uma manhã de sol
O índio tinha despido
O português.
Uma natureza envergonhada se apossou de
nós. Inculcamos a expulsão do paraíso e a caretice se institucionalizou.
Vestimos casacas pretas, luvas e je vous
parle français. Adotamos até outra língua. E cobertos dos pés à cabeça
completamos nossa castração. Outra lógica se sobrepôs a nossa primeira natureza
e Baco, quer dizer, Tupã foi para as cucuias.
Expulso por uma representação esquálida, marcada pelo sofrimento, uma
negação da festa. Certo sujeito, do alto de sua sisudez, havia advertido que
não cria em um deus que não dançava. À sua fala sensata ninguém deu ouvido.
Tarde demais para os índios, tarde demais para nós. O fraque, a cartola e os
modos finos. Suávamos em bicas, mas não se perdia a pose. A literatura entendeu
o recado e a etiqueta presa a gola.
Engomada, com vincos, branca e oficial. Parecia dizer. E o ensaísta, em conversa com um escritor lá
do Ceará, doido para ver Iracema pular sete ondas, abismado pela tevê de tubo
estreito em que bilaus e pererecas
pareciam exangues, as penas dos cocares murchas e os tucanos lavados em água
sanitária, pergunta: Por que Pero Vaz de Caminha não tomou cauim? Por que não se
banqueteou com os guerreiros, arrancou as pesadas roupas e escreveu a El-Rei
uma carta enlouquecida? Cobrindo um Woodstock in loco e louco, no meio da selva, com direito ao amor livre e a
uns fuminhos espertos?
Inquiridor
(O douto ensaísta
acompanhado pelo amigo escritor do Ceará quer arrancar os bagos de Mario de
Andrade)
E aí? Além das salas lotadas dos
psicanalistas, dos suicídios, homicídios, do consumismo e da falta de
imaginação, você pergunta e aí?
Porra, você não sensibilidade, mesmo. A merda toda afundando ou boiando? Não
sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. A merda toda responsabilidade
de um só carinha – Pero Vaz de Caminha – e o assassinato de florestas para a
publicação de livros insossos, que a cada semana precisam de transfusão
sanguínea, as canículas penduradas nos cadernos culturais, levando soro às
veias do paciente e outros doutos sisudos, menos alegres, agindo como
ressurretos quando estão mumificados. Você ainda pergunta, com cara de guaca
mole, e aí? O ensaísta e o escritor
lá do Ceará, das terras de Iracema e que não é José de Alencar, vice de Lula,
nem o escritor da Guerra dos Mascates, nem é tratador de mascotes ou
participante de convescotes, indignado, puto da vida mesmo, atarantado, desiste
da resposta educada. E idem, ibidem o ensaísta. A gente, em vôo por Sum Paulo,
sanguinários, caçando o veado do Mario de Andrade, que num poema diz ter sido
esquartejado e enterrado em qual lugar cada parte, só para aporrinhá-lo,
parafusá-lo em nossa barafunda, por que, afinal, aquele felá da puta, não tomou
cauim com índios?
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