O Invasor
Para
Anderson Fonseca, o fabulista fabuloso
‘Quando completava um dos blocos, encerrava-o em um envelope
pardo e o remetia para um destinatário desconhecido. A família, receosa por sua
segurança. A atitude quebrava o protocolo da imobilidade – o único conhecido
daquele homem. E, portanto, a salvaguarda de seu caráter. O deslocamento até a
agência dos correios representava alta traição’
O homem parado no quintal veste roupas
sóbrias. O chapéu largo, a capa de chuva e os sapatos impermeáveis protegem-no
do frio e da chuva. Ele mantém-se imobilizado
durante todo o tempo. Uma vez ou outra é possível percebê-lo fazendo anotações.
Escreve compenetradamente. O bloco e a caneta, escondidos sob a capa de chuva,
são retirados com rapidez. E, ali, é registrada alguma informação preciosa. O
semblante sério não o deixa mentir quanto a isso, embora não se possa vê-lo
totalmente. Os olhos, sob a aba do chapéu, faíscam durante a noite. Vasculham-na
inutilmente, em busca de não se sabe qual segredo. Frustram-se por não
encontrá-lo. Não desanimam, repetem insistentemente a operação. Quando o dia
amanhece, ele, o homem, está lá. De pé. Permitindo-se um alongamento discreto
dos braços e das pernas. As cãibras, as malditas cãibras. A família
acostumou-se à presença dele, embora, no início, se sentisse incomodada com o
relatório das atividades de cada membro da casa.
Quando completava um dos blocos,
encerrava-o em um envelope pardo e o remetia para um destinatário desconhecido.
A família, receosa por sua segurança. A atitude quebrava o protocolo da
imobilidade – o único conhecido
daquele homem. E, portanto, a salvaguarda de seu caráter. O deslocamento até a
agência dos correios representava alta traição. Passaram a ignorá-lo. Não lhe
serviam água ou o almoço. Nenhuma gentileza a mais foi praticada. Sempre que
era visto com o bloco de anotações passara a ser ridicularizado. Os membros da
família saíam e conversavam todos ao mesmo tempo. Tornava-se impossível o
registro do que quer que fosse. O homem parado no quintal redobrava sua
concentração. Percebia-se seu esforço para a realização de seu trabalho, mas
era inútil. Acentuaram a confusão ainda mais: da arrumação dos cabelos às
roupas. Vestiam-se de modo extravagante ou saíam nus para as atividades fora do
lar. A situação parecia sair do controle. Ele desesperava-se . Desfazia-se.
A traição do estatuto da imobilidade e da
vigilância contínua atentou contra a reputação do homem parado no quintal. A
instituição que o havia incumbido da tarefa, indispôs-se. Ele não tinha
permissão para deixar o posto. Fariam chegar a ele todo material necessário
para o cumprimento de sua tarefa. Retirariam a documentação produzida. Porém, a
precipitação atentou contra a credibilidade junto à família. Ele deveria passar
a impressão de que estava ali para protegê-los. E não espioná-los. E se os
espionava, era por motivo de segurança. A alta cúpula admitiu despedi-lo. A
cogitação de dispensa o abalara. Outro protocolo foi quebrado. O homem mais
velho da família entrou em contato com a organização que colocara o homem
parado em seu quintal para a resolução do impasse: sugeriu que o transferissem.
E outro viria para o seu lugar. A agência não apenas negou a sugestão, mas
reforçou uma decisão tomada de última hora em mantê-lo no quintal. Tudo isso
foi comunicado num exíguo bilhete, que em suas linhas finais dizia: Espero que aceitem e entendam. Seguido da
assinatura com as misteriosas iniciais J.K.
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