O Doce Veneno da Serpente
O jornalista Ricardo Kotscho, no livro Tempo de Reportagem, de Audálio
Dantas, promove um desagravo: credita a invenção do novo jornalismo à imprensa
brasileira, durante a década de 40, através do nome de Joel Silveira. O próprio Audálio Dantas, praticante da
modalidade, aponta publicações como a revista Realidade, endosso da prática
corrente desse tipo de jornalismo atribuído à influência de autores americanos
do porte Norman Mailer, Truman Capote e Gay Talese.
A polêmica está instalada. Se a paternidade não pode ser reclamada e os registros alterados, resta o consolo que
aos pais adotivos não faltou competência para criá-lo, educá—lo e mantê-lo como gênero. As obras produzidas por seus
cultores norte-americanos, representam marcos nessa espécie de narrativa. Norman
Mailer, entre seus inúmeros livros, podemos destacar Miami e o cerco de Chicago sobre a prévia e a campanha que levaria
Richard Nixon ao poder; Truman Capote
com sua obra-prima A Sangue Frio,
traduzida no Brasil por Ivan Lessa, trata sobre um brutal assassinato no
Kansas; e, Gay Talese com Aos Olhos da
Multidão, publicado nos anos setenta, pela editora Cultura e Expressão e
reeditado pela Companhia das Letras, acrescido de outras matérias, com o título
Fama e Anonimato, reúne as principais
matérias do autor do célebre perfil do cantor americano Frank Sinatra.
No Brasil, o “inventor” do gênero foi Joel Silveira. Sergipano radicado no
Rio de Janeiro, cobriu como repórter a Segunda Guerra Mundial. A experiência
refletida no livro O Brasil na 2ª Guerra
Mundial, mostra o cotidiano no front.
No livro, publicado pela Ediouro, pode ser encontrado duas peças narrativas
exemplares Eu vi morrer o Sargento Wolff
, morto em uma patrulha na Itália e O
pracinha Carlos Scliar, artista plástico gaúcho, que mantinha um caderno de
desenhos onde registrava o dia a dia da campanha.
O repórter gabava-se por ter conhecido três presidentes da república:
Getúlio Vargas, João Goulart (Jango) e Jânio Quadros. Os flagrantes dessas
personalidades podem ser vistos através dos artigos reunidos no livro Tempo de Contar (Record) e mais
recentemente em A Feijoada que Derrubou o Governo (Cia das Letras). Esteve com
intelectuais, frequentemente na companhia de Graciliano Ramos, personagem que
lhe rendeu histórias engraçadíssimas, entre elas a criação de um Golfo para o
país ganhar importância geo-política e a da malograda tentativa literária da víbora
- epíteto que o jornalista deve a Assis Chateubriand - frustrada pelo autor de São Bernardo. O registro pode ser lido em Na
Fogueira: memórias ou
em parte no Milésima Segunda Noite
(Cia das Letras) em que os retratados não sofrem retoques. Há um curi0so relato
sobre o poeta João Cabral de Melo Neto.
Joel Silveira foi objeto de um documentário realizado por Geneton Moraes
Neto. A gravação de Garrafas ao Mar: A
Víbora manda Lembranças, deu-se, em parte, no apartamento do jornalista, em
Copacabana, onde residia. A saúde fragilizada, mas com as idéias no lugar, Joel
Silveira falou sobre a sua carreira discorreu sobre assuntos polêmicos e se a
acidez era sua moeda corrente quando era um jovem repórter, ali percebe-se que
ela fora substituída por uma melancólica serenidade. Um pessimista, Joel
afirmava que o Brasil era uma farsa e dava por encerrada suas ilusões democráticas.
Em entrevista a Istoé Independente
pode ser constatada a sua visão a respeito do país:
“O Brasil é uma farsa. É uma farsa democrática porque não
é uma democracia. Não é democrático que um presidente edite todos os dias uma
medida provisória. Se temos uma Constituição, obedeça. Mas como os artigos
constitucionais não lhe servem, então tome medida provisória! O Lula com dois
anos de governo já editou mais de 200 medidas provisórias, como fazia o
Fernando Henrique Cardoso. A democracia racial é outra farsa. Quantos generais
negros você conhece? Quantos negros há no Congresso? Quantos presidentes de
empresas são negros? A economia também é uma farsa. Por muito tempo nos
orgulhávamos de ser a oitava economia do mundo. Uma economia que só beneficia
uma minoria, talvez 30 mil pessoas numa população de 180 milhões. A
concentração de renda no Brasil chega a ser obscena. Nada mais cruel e sovina
do que o empresariado brasileiro, o banqueiro brasileiro. De benefício ao
trabalhador só dão o mínimo que a lei obriga. A elite brasileira é
essencialmente míope. É como aquela frase de Luiz XIV: “Depois de mim, o
dilúvio.” Não há solução enquanto não se resolver esse problema da divisão da
renda, o que eu acho dificílimo porque a elite não abre mão de jeito nenhum. O
povo brasileiro é passivo, não reage.”
(http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/10504_PUNHAL+DE+VIBORA?pathImagens=&path=&actualArea=internalPage)
Considerado por muitos jornalistas um
mestre, morreu com 89 anos, em 2007.
Geneton Moraes Neto retoma a palavra para descrever a saída do corpo:
“E o agente veio. Acabo de sair da casa de Joel Silveira. Não quis ver a
saída do corpo. A Santa Casa de Misericórdia avisou que o agente chegaria às
duas horas. Pensei comigo: "Com a pontualidade brasileira, ele vai chegar
lá para as quatro da tarde".
Engano. Nem uma hora e cinquenta e nove minutos nem duas horas e um :
eram duas em ponto quando o agente apertou a campainha, no apartamento de Joel
Silveira, no sexto andar de um prédio da rua Francisco Sá, em Copacabana.
O agente encenava, sem suspeitar, o poema de Lawrence Ferlinghetti.
Era como se dissesse: tudo pode atrasar no Brasil, mas a morte, quando vem, chega exatamente na hora, sem tolerância. Nem um segundo de atraso.
O agente encenava, sem suspeitar, o poema de Lawrence Ferlinghetti.
Era como se dissesse: tudo pode atrasar no Brasil, mas a morte, quando vem, chega exatamente na hora, sem tolerância. Nem um segundo de atraso.
Desci do sexto andar. Lá embaixo, tive o gesto inútil de observar a placa
da Kombi branca da Santa Casa de Misericórdia: LFR 1236. A Kombi trazia, nas
laterais, o nome da Santa Casa e o telefone: 0800 257 007.
Joel tinha inveja de um personagem de Vitor Hugo que, minutos antes de
ser guilhotinado, dizia, resignado, que estava pronto para a execução,mas
"gostaria de ver o resto". Ou seja: o personagem gostaria de
descrever a própria morte.
Que palavras Joel usaria ?
Quanto a nós, discípulos e aprendizes, já não há o que fazer, além de
anotar a placa da Kombi : LFR 1236, três letras e quatro números amargamente
inúteis.”
(http://www.geneton.com.br/archives/000249.html)
Em meu último encontro com
Joel Silveira, que sofria de uma estranha paralisia que o impedia de andar,
devido ao inchaço nas pernas, ele me confidenciou:
“A
unanimidade nunca esteve ao meu lado. Pratiquei outro tipo de jornalismo,
daquele que vai atrás das notícias e de fatos que, potencialmente, poderiam se
tornar notícias. Não ficava enfurnado na redação, apurando por telefone. E
nunca me ausentei daquilo que escrevi. Isenção é uma bobagem, nunca fui,
não era e não serei uma máquina para cuspir a notícia pronta, sem
interferências. Talvez fosse o tipo de jornalismo da época. Talvez isso tenha
me rendido um bocado de inimigos”
Encerrava com voz gutural a
peroração, palavra de que tanto
gostava. Outra era acendrado. E pontificava:
“Por que o
medo das palavras?”
A discussão se embrenhava aos
meandros modernistas. Os impropérios desferidos desancavam o principal mentor
do Movimento paulista de 22. Se estivesse vivo, depois das inúmeras homenagens,
talvez mudasse de idéia quanto a sua unanimidade
ou apenas com olhar debochado, corrigisse o rumo da conversa para algo mais
proveitoso.
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