transplante


meu pai em uma cama de hospital. o médico tinha uma só palavra na boca: transplante. apontou para o velhote que dormia no leito ao lado, três anos de espera. a fila era grande. restava ter paciência. muitos morriam à espera do órgão. o governo com propagandas para doação, artistas de televisão incentivando o individuo. mesmo com toda a parafernália em torno. o número de familiares que permite, a retirada dos órgãos da vítima de acidente ou morte cerebral para salvar a vida de outra pessoa, é pequeno. o médico me explica. meus olhos não abandonam meu velho. não era justo. perguntei como se comprava um rim, um coração ou pulmão. o médico me alertou que custava muito dinheiro no mercado negro e que na maioria dos casos, os órgãos vinham de mortes encomendadas, em sua maioria de jovens. assassinados nas regiões carentes da cidade, verdadeira chacina. ele me recomendava tirar isso da cabeça, orar para a recuperação de meu pai, para a reversão do caso. pedir um milagre. eu não tinha forças para rezar. o milagre não chegou para o velhote do leito ao lado, mesmo com as orações e os passes tanto dos evangélicos quanto dos espíritas que freqüentam as visitas nos domingos. deus age devagar demais, aleguei para o médico. conforme-se, rapaz. bateu nos meus ombros e se foi para outra ala do hospital clinicar. meu pai, com dificuldade para respirar, devido aos aparelhos aos quais estava ligado, dava com a mão no ar, deus cuidaria dele. acalme o seu coração, me dizia. o médico aparecia a cada dois dias. as enfermeiras responsabilizavam-se pelos serviços com os pacientes. minha irmã se revezava comigo. nos dias impares, eu dormia. nos pares, a vez era dela. no ônibus para casa, minha cabeça não parava de pensar nas palavras paciência, milagre e fila. aquilo me angustiava. e irritava. em casa, minha mulher via no meu rosto a preocupação. no meu trabalho todos solidários, corriam rifas para amenizar o custo das despesas com meu velho no hospital. mês passado, um rádio. retrasado, relógio de pulso. nesse mês, um computador de segunda mão. o médico, sorridente, deve ter dormido bem. como está? pergunta para o meu pai. morrendo, responde com humor. todos nós - emenda o doutor. ausculta pulmão, coração. apalpa partes do abdômen. e se dirigindo a mim, conformado? doutor, não vou me conformar nunca. como se conserva um órgão para transplante? perguntei. no gelo, certeiro e sem meias palavras. e saiu. você pode me dar licença. liguei para minha mulher, pedi que mandasse vir para o hospital a minha irmã, não me sentia bem. minha irmã chegou preocupada. não dei muitas explicações sobre minha indisposição. fui a uma loja de departamentos, comprei uma caixa de isopor. encontrei um engraçadinho na fila, vai vender picolé na praia? mandei à merda. a minha cabeça rodava. a lembrança do meu pai no parque, conosco. nas festas juninas na pescaria. meus olhos marejavam. no mercado negro custa muito dinheiro. o revólver. já estava em minha mão. a fila, a esperança de a fila andar. o governo, os artistas. o rapaz morava em frente à minha casa. sozinho. não tinha família. ninguém iria sentir falta. parecia bicha. não tinha namorada. que se dane. se fosse homem, dava na mesma. é veado o menino aí da frente, amor? que mau juízo é esse do rapaz. minha mulher me recriminava. sondei na rua se alguém o visitava. nunca, ninguém. dei para cercá-lo no bar. um dia, caiu. uma semana de desenrolo. papai não tem mais um mês, meu irmão. por que a gente não pega um cinema. minha namorada. me desarmou. desconversei. tinha compromisso. ela gostou muito de você. a gente curte sexo a três, gosto de vê-la sendo comida. e se for por você que é meu camarada. tudo bem. marcamos. o hotel, longe. minha mulher não pode desconfiar. pedimos um jantarzinho. que porra de caixa de isopor é essa? é pro meu sobrinho vender picolé na praia. isso o tranqüilizou. música ambiente. todos descontraídos pela bebida. dormiram. amarrei a namorada dele na hidromassagem. antes de sair, tratei de matá-la.o rapaz morto não reclamou do uso da faca de cozinha. lavei minhas mãos. paguei a diária. e adverti a recepcionista de que o casal não queria ser interrompido.

Comentários

Unknown disse…
Futuramente voce deverá lançar uma antologia com a temática educação em saúde.
Este texto junto com o contundente “gene” revela um panorama do abismo da linguagem dos profissionais de saúde e sua clientela.
Se tivesse finais “felizes” já estariam sendo usados em cartilhas e manuais dos serviços de saúde.
Se houvesse finais “felizes” não seria Mariel Reis.
Unknown disse…
bacana esse post, Mariel.
tô lendo o livro que tu me mandou aqui, toda vez que me sobra um tempo.
grande abraço.
Unknown disse…
Olá Mariel,
A vida das entranhas da nossa cidade fica à mostra no ritmo rápido e cortante dos teus textos. Impressiona a crueza nas palavras que giram como rodamoinhos os fatos na emoção do leitor. E Nélson Rodrigues me acompanhou em diversos momentos.
Parabéns,
Ab,
Gianguido Bonfanti

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