espírito natalino
para moacyr scliar
os moleques não dão folga. papai noel!papai noel!dou uma risada sem graça e sigo meu rumo. o calor desgraçado da roupa mata qualquer um. dezembro é assim mesmo. todo mundo receptivo ao velho com o saco nas costas. nem os canas me páram. tiro fotos com gente de toda idade. posso sentar no seu colo papai noel? pode. muita mulher velha quer fotografia com o bom velhinho. uns garotos enxeridos perguntam – o que tem aí no saco, noel? – nada, menino bobo. a mãe retira a criança de perto. não vê que é um homem fantasiado. o guri sai decepcionado. de outra vez, um acidente. armado, papai noel? a cidade é muito violenta, filha. muito ladrão. mãe, o papai noel tá armado. deixa de dizer besteira, vamos embora. coloco a minha cadeira na praça, de frente a loja da encomenda. às vezes a multidão não me permite ver direito a movimentação. meu filho pode tirar foto com o senhor? pode. o celular toca. como é, fez o serviço? e ele morto? desligo. vai amolar a mãe. o sujeito não tem idéia da dificuldade de se apagar alguém. o tempo muda. carrego meu banquinho dobrável para debaixo de uma marquise. fim de expediente. a loja onde a encomenda trabalha fecha. ele vem até onde estou. papai noel sozinho aí nessa chuva, é? me dá um tapa no ombro. tá me olhando com a cara de que sou grandinho demais para acreditar em papai noel, não é mesmo? certo. sabe de uma coisa, meu filho adoraria se você aparecesse lá em casa. quanto você cobra? é só entregar para ele esse embrulho. a oportunidade é única. aceito. no táxi, trocamos poucas palavras. a casa em um subúrbio distante. é aqui. onde ele está? ele pergunta a mulher sobre o filho. ah, amor, o papai noel. prazer. ela me beija o rosto. está lá em cima, brincando. ele sobe as escadas e eu o sigo. enfio a mão no saco para apanhar a pistola. ele nota meu movimento. isso se prepara. pega o presente. abre a porta do quarto, o menino não percebe que entramos. filho , o papai noel veio visitar a gente. tiro depressa a mão da embalagem onde esta a arma e imediatamente, retiro o embrulho com o presente. ele quase não enxerga, me diz o pai do moleque. papai noel, me deixa tocar seu rosto. as maõzinhas tateando a minha barba postiça, os meus óculos e as minhas sobrancelhas. me deixa abraçar você. o homem emocionado tira do bolso a nota com o valor que combinamos. olhos cheios d’água. o guri rasga o papel de presente. é um caminhão. obrigado, papai noel. o celular toca. atendo. e aí, o serviço? vai tomar no cu. o papai noel disse coisa feia, o menino aponta para mim. o pai não parecia aborrecido. menti. era o dono da loja para qual eu trabalhava. eles torram o saco da gente, né. torram mesmo. me encaminhei para a porta. a nota amassada na mão. ele me estende. aqui o dinheiro. não precisa. dou às costas e saio. na rua, aceno para o táxi. tiro a barba postiça. dia duro, né, chefe. minha filha vai adorar saber que carreguei o papai noel na minha carroça. eu sei, resmunguei. ninguém está livre do espírito do natal.
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