Dois Posfácios, Dois Temperamentos

A Sordidez das Pequenas Coisas ou A Iluminação Pelas Pequenas Conjecturas
(Para Alessandro Garcia)

É sabido, pelo menos por mim, que durante a leitura de um livro digno de ficção, a sensação de cansaço empreendida na travessia permanece nos músculos, excita a imaginação e congestiona o cérebro, porque tivemos contato com algo superior e, sobretudo, descrito de modo convincente por alguém que deseja um pacto completo com a ilusão que cria. Isto sem dúvida deve ser o que ambiciona todo ficcionista, estreante ou não. Mas poucos conseguem manter o leitor preso à sua teia, mesmo quando o volume fechado sobre a mesa assombra a consciência com a qual manteve, naquele espaço de tempo, cumplicidade e terror, para revelar os caminhos da iluminação sutil do que está ao redor.

Alessandro Garcia, ilusionista gaudério, forçou-me a adotar a postura do deus Janus. Voltando meu olhar tanto para o meu interior quanto para o volume sobre a mesa. Não lhe falta à habilidade do narrador, tampouco a inventividade para fixar no espaço ficcional identidades reelaboradas a todo instante: jogo que nos arremessa em um labirinto ou em um sonho. Sobretudo, em narrativas como Vãos, Décagono e Epifania.

Como é um posfácio, posso me dar ao luxo de apontar o intrigante. Uma narrativa curta, intitulada As pernas flácidas de Dona Ataíde, onde tudo o que é preciso para um grande contista está presente. Se esta curta ficção me causou o bom impasse, é possível que isto se transfira ao leitor, em maior ou menor grau. Pode ser origem de uma preferência repleta de símbolos do inconsciente. Está lá o gato, a catarata, o jovem e a pedrada. Tudo em um mix de espanto, sexualidade e horror. Caminhos para um ensaio psicanalítico. O escritor é a ouvidoria para todas as nossas esquizofrenias.

Antes minha intenção era afirmar que a Sordidez das Pequenas Coisas é um livro místico, apontando para uma iluminação particular através destes incidentes que se observados com atenção podem reformar o intimo de um homem, mas achei pretensioso, quem iria acreditar em mim?

Dentro disto de iluminação, difícil não se desvencilhar da comparação com outro escritor Henry Miller, que da sordidez, da desfaçatez e outros índices da crapulice humana, construiu para si uma beatitude, talvez semelhante a que pretenderia abordar, se não me faltasse competência para descrevê-la em detalhes. Mas por similaridade, a preferência por estes anônimos, enjaulados em sua dor muda, conduzida ao escritor como este ouvidor, que poderá sujeitá-la a nova ordenação e revelar-lhe a possível beleza.

Os personagens fincados nas narrativas de A Sordidez das Pequenas Coisas possuem aquele aura de outros co-irmãos, presentes em Primavera Negra, onde Henry Miller, pontua-os do seguinte modo: "(...) Os rapazes a quem se admira quando se vai pela primeira vez à rua permanecem juntos toda a vida. São os únicos heróis reais. Napoleão, Lênin, Al Capone...são fictícios. Para mim Napoleão não é nada comparado com Eddie Carney (...)" É desta forma que me soa a presença de Lorenço, Aline e Liane, dona Ataíde, não personagens, mas gente de carne e osso, que não ergueu da folha em branco, mas que caminha pelo bairro do Menino Deus e, que um dia, pretendo apertar as mãos, sentar-me para um café e perguntar-lhes sobre como passaram a semana. Vale a pena percorrer estas páginas.

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Uma Epopéia do Delírio
(Para Anderson Fonseca)


O narrador duplica-se quando se afeiçoa a estratégia do delírio. No interregno da fabulação narrativa o eu - enunciador e o objeto enunciado distanciam-se para a criação do pacto ficcional, afirmado no trecho transcrito:

“Adoro conservar delírios em potes de vidro mergulhados em vinagre e sal. Estes assim mantenho, para caso eu precise, me baste abrir a tampa e liberar alguns para os consultar, inspirando-me deste modo o que escrevo. Cada delírio tem sua cor específica, diz a ciência que existe mais de mil cores no universo, imagine então, você, quantos delírios tenho, são tantos que tive de fazer um cômodo no fundo da casa só para eles, uma biblioteca. Os delírios reclamam por estarem presos, mas, se eu deixar estas criaturas miúdas e viscosas escaparem, irão invadir minha consciência com seus risos e lágrimas conturbando meu espírito, por isto, os preservo cativos, reclamem o quanto puderem"

Lembra-nos o autor, nesta fuga da razão, que se não for contida, adverte que irão invadir sua consciência, que se há a presença invasora, subversora das forças ordenadoras da própria narrativa, transformando o narrador em um incômodo para esta nova consciência nascente, um transtorno que o coisifica, forçando-o a viver achatado em uma realidade como a descrita abaixo:

“É embaraçoso viver numa casa desenhada por Escher, e muito mais embaraçoso saber que a casa existe numa folha de papel, pois apesar das três dimensões do espaço, as duas dimensões da folha aproximam os céus e a terra de tal modo que tudo em cima é como embaixo, logo preciso andar de cócoras para evitar que os céus esmaguem minha cabeça e a terra esprema meu corpo; assim sou um carrapato a mover-me num mundo de duas dimensões das quais as outras três da casa são mero simulacro de alguma coisa que está fora, e eu também um simulacro de algo que vive nesta coisa. Imagino que Escher a projetou e lançou-me nela para divertir-se com o fato de que na casa tudo sendo em cima como embaixo andar de cócoras é a forma mais simples de evitar um dilema. E já que não há como sair da casa pois aqui tudo em cima é como embaixo, permanecer nela não é a escolha mais sensata, porém, uma condição inevitável"

Classificada como embaraçosa, porque indicativa do esmagamento do eu-enunciador, reduzido nas dimensões deste habitat a um inseto, percebe-se a revolta daquilo que é enunciado como uma rebelião de delírios que parecem querer remontar a este período onde seus nervos estavam livres destas apreensões apresentadas na narrativa:

“Para esquecer o dia anterior tomo meu remédio pontualmente às 6 da tarde. E isto faço porque assim que esqueço fico saudável. E isto também faço porque assim que esqueço conheço meu futuro e viver é mais tranquilo. No entanto, embora o relógio bata às 6 da tarde avisando-me do remédio, assim que tomo, assim que esqueço e outro dia vem, tenho a impressão de já viver este dia. O problema está aí: se alguém chega a mim e pergunta “como foi seu dia?”, não sei, e se me perguntam como será eu o sei, mas quando vou responder não o sei mais. Como queria me livrar desta doença”

O estado de doença é característico da intrusão, do padecimento da psique, semelhante na obra do autor francês Guy de Maupassant, em Horla.

As similaridades entre estas duas narrativas coincidem em dois aspectos: a presença de uma natureza duplicada e o delírio como tática narrativa para a fragmentação do discurso lógico-cartesiano.

A presença de uma realidade duplicadora, indicada como doença, espelha-se e espalha-se na definição de imagem e, portanto da própria realidade que procura representar:

“É com muito cuidado que escolho os porta-retratos e fotografias para o meu quarto. Ocorre-me a ideia, uma vez vivenciada, de que a imagem que escolho poderá tornar-se minha sina”

O desfecho revela-nos a origem da presença intrusiva, invasora e desordenadora alojada no cérebro do narrador:

“Faz um tempo que meus pensamentos estão sob a regência de uma bactéria. Não sei como ela chegou ao meu cérebro, mas lá está, fazendo de cada sinapse a arquitetura de sua vida. Lembro somente, que uma certa vez, sonhei que uma bactéria comia minha mente. No dia seguinte, comecei a duvidar das coisas e a ter intensas dores de cabeça. Na mesma semana a Scientific American noticiava a descoberta de uma bactéria que é capaz de alterar o estado cognitivo do ser humano. Ao ler isto, fui ao médico que confirmou minha suspeita. O doutor sugeriu uma cirurgia, mas recusei"

A alteração cognitiva, matéria da narrativa, artifício de que se vale o escritor, para conduzir-nos ao desenlace ficcional, é um artifício engenhoso, porque, se abre um viés para entendermos a distância temporal – “A verdade é esta: O tempo quebrou e necessita ser consertado” – e a metamorfose existencial do narrador, o leitor é advertido da nocividade da fantasia.

Notas de Pensamentos Incomuns dialoga com esta tradição do duplo. A realidade é infinitamente distorcida por recriações que desnorteiam o leitor a respeito de verdade, mas compensa a leitura.

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