Reflexões Sobre A Literatura Brasileira Contemporânea

A literatura brasileira contemporânea sofre de anemia. Este diagnóstico é o menos pessimista, poderia se dizer que padece de uma doença terminal: a PRESUNÇÃO, que em poucos dias dizima o corpo do paciente, mas não quero ser um alarmista, porque de alguma forma estou incluído no conjunto de que falo, não podendo me furtar a reflexão crítica, mesmo que amarga.

A reflexão teve como ponto de partida a leitura de três livros de jovens autores recém – lançados. Um gaúcho e os outros dois cariocas.
A minha primeira estranheza: os livros têm uma mesma dicção. Parece que com a internet, a rapidez de comunicação por meios tecnológicos, às questões regionais tanto da língua como da cultura estão indo por água abaixo, ou estão em um plano bastante inferior, porque não são levadas em conta no fazer artístico dos novos autores. A referência a este fator se deve a leitura do romance do autor gaúcho que se tivesse sido escrito em Bombaim não faria a mínima diferença, porque não há um traço identificador, nada que possa levantá-lo do chão, da literatura pedestre que pratica. Isto se justifica se colocarmo-nos ao lado de autores como Josué Guimarães – para ficarmos com um nome inconteste nas letras modernas. Não há obrigatoriedade em literatura, mas o que poderia se tornar um traço distintivo, é visto como penduricalho ultrapassado; a experiência que constituiria a modelação de um universo em todos os sentidos particular no íntimo de um autor é desprezada como se representasse o prolongamento de um subdesenvolvimento que o envergonha – com isso as individualidades se anulam, fazendo com que os livros tratem de uma mesma experiência, todas pintadas com uma mesma cor – o cinza.

Os dois autores cariocas também causam a mesma sensação, porque mesmo vivendo em uma mesma cidade, têm experiências com o psiquismo desta metrópole similares, o que talvez soasse negativo, caso ambos fossem moradores de um mesmo bairro na zona sul do Rio e compartilhassem o mesmo território para estudo de personagens; mas é negativo, profundamente. Porque os dois jovens pertenciam a bairros distintos, no entanto, mantêm uma visão unívoca em torno da realidade como se a vida toda tivessem a cumplicidade que mesmo criaturas gêmeas não têm. Os livros sempre giram em torno do eixo temático que a contemporaneidade elegeu como o principal: meta-literatura. Talvez este eixo temático nasça de nossa incapacidade de ler a tradição da nossa literatura com força o suficiente para empreendermos um diálogo não submisso com nossos maiores autores, mas uma conversa que nos revele um caminho dentro da exaustão experimentada diante das vanguardas e do pós – modernismo que se esgota toda vez que tenta provar que permanece de pé.

Porque são todos meta – literatura? A observação dos livros pode responder satisfatoriamente a pergunta. O leitor atento verá que a estória do cirurgião é uma metáfora inteligente para se aludir ao trabalho minucioso de ambos, tanto o do escritor quanto o do cirurgião, aliás, isso tinha sido aludido em um conto impecável de Moacir Scliar As Mãos do Sr. Julio, onde um jovem escolhe a profissão de cirurgião devido à habilidade manual de um arrombador de cofres. Outra metáfora bastante intrigante dessa mesma situação. Dos livros dos autores cariocas, a intenção é clara o bastante para ser ignorada, segue o exemplo:
”Sou de outros tempos: quando era algo maravilhoso ter escrito um livro”.
Não se pode discutir a esse respeito quando o discurso salta diretamente para diante do leitor. A exaustão de mecanismos para se conseguir uma nova maneira de se observar à literatura pode ser convocada quando da leitura do livro, os narradores precisam chegar à violência tanto ética quanto estética para chegar a um caminho literário que logo após ser abordado se torna estéril e, portanto inútil, levando a certa altura da novela a citação transcrita acima. No outro livro, portanto, o conceito de meta – literatura está mais cuidadosamente escondido. O fato é que ele não está metaforizado como no caso do autor gaúcho, nem tão explicitado como neste outro examinado, residindo nas explorações de cenas da realidade duplicadas vistas por uma repórter que entra em surto com a cobertura de quadros de violência. O artifício está embutido nos vários registros que a narradora é obrigada a realizar, colocando em cheque a noção de real, levantando a hipótese do quanto é criado por nós mesmos ao tentarmos transmitir o fato em si, puramente. Não será surpresa se formos apanhados por esta estética da deformação. Este talvez tenha sido o mais inventivo em maquilar a intenção da meta - literatura.

Por que uma literatura que volta para si mesma, anda em círculos, tem aplausos da crítica, não pode ser apontada como indício de uma falência? Por que está atitude que representa também uma ideologia excludente, quando não é capaz da transferência, do diálogo, insinua algo a mais que simplesmente um jogo, de que a intenção lúdica? Onde estão fincadas as raízes deste fazer literário? Talvez numa sociedade narcisista.

A literatura contemporânea e a sociedade narcisista estão em um mesmo pólo, porque ambas privilegiam a idéia de indivíduo e não o próprio indivíduo. A idéia de indivíduo construída pela propaganda, pelas normas de sucesso profissional, pelos indicadores relacionais, pelas exigências de consumo, por uma série de requisitos a que uma certa idéia de indivíduo está intimamente relacionada, sendo negociada a todo instante, provocando graves crises na consciência comum que deseja o extraordinário deste novo homem. A respostas percebidas da sociedade a esta fomentação podem ser vistas nos jornais como notícias de seqüestro, assaltos e assassinatos, ao culto irrefletido de personalidades que antes ocupavam um espaço restrito, reservando-se a ele um tratamento sui generis, como no caso de bandidos e policiais violentos que ganham status de superstar. Talvez esta seja uma parte da resposta desta atitude antiética e antiestética, se não a mais importante, a visível.

O indivíduo está soterrado nos escombros de todos esses apelos. Preso ao cotidiano mesquinho da grande cidade não cria a consciência que possa levá-lo a uma separação do amontoado de sugestões que insistem em sê-lo, quando se tivesse desejo, abominaria ser uma falsificação.

Os livros abordados contêm em graus diferentes a presença desta degradação. Isto não representa um juízo de valor ficcional, mas a constatação de que existe nesse tipo de literatura largamente praticada uma ideologia do poder, uma manipulação da crença narrativa de que se escreve contra um narrador onisciente e determinador dos caminhos ficcionais e históricos. Nestes livros se nota que nunca se escreveu tanto a favor de uma determinada idéia de indivíduo quanto neste momento no país, com uma literatura que destrambelhou o discurso, mas não soube desmontá-lo, separá-lo da máquina que o engole. O que é triste, porque se de um lado os autores possuem autonomia para escreverem, não percebem que muito poucos escolhem as alegorias sobre as quais podem erigir seu discurso. O diálogo com a tradição seria o antídoto para essa espécie de alienação, porque não pode ser detectada logo em um primeiro exame.

Os modos de operação utilizados nas narrativas analisadas refletem, na visão deste resenhista, um paralelismo com uma sociedade narcisista – porque incapaz da alteridade, como o próprio conjunto das narrativas que apenas se reconhecem a si mesmas em sua fabricação; colocando no centro de sua elaboração personagens privados em sua totalidade de uma intervenção sobre o plano ficcional em que são desenvolvidos, porque não se reconhecem, não existindo de fato, participam apenas de cristalizações de determinado autor a respeito de coisa determinada, não possuindo no âmago de sua criação a vontade dos julgamentos próprios por obedecer, talvez inconscientemente, a uma plataforma tão rígida quanto a que norteava nossos romancistas em suas reviravoltas na década de 20, no advento do Modernismo.

Então reforço que há neste tempo um modo ditado pelo poder de fabricação de um discurso que não está sendo detectado por nós escritores, que está sendo nocivo porque atrás deste método se esconde uma ideologia perigosa que aniquila uma certa idéia de humanidade que atravessa as melhores narrativas, para substituí-lo por conceitos que não levam em conta este idéia da invenção do humano que em cada época nossos melhores escritores precisam reinventar para que o homem se perceba diante de si mesmo em seu melhor e em seu pior.

Na literatura de Kafka que a todo momento coloca a descoberto esta questão, podemos encontrar o desmonte aludido deste discurso do poder que deveria servir para nortear e esclarecer a respeito deste maneira sutil que o poder usou para infectar as narrativas de seus princípios.


As reflexões sobre a literatura brasileira contemporânea se baseiam nos seguintes livros :
Mãos de Cavalo,Ed. Cia das Letras, Daniel Galera.
O Dia Mastroianni, Ed. Agir, João Paulo Cuenca.
Lugares que Não Conheço,Pessoas Que Nunca Vi,Ed. Agir, Cecilia Gianetti.

Comentários

ana paula maia disse…
Ei.... alguns breves comentários no blog: killing-travis.blogspot.com


abçs!

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