Leitor, Abominável Leitor?

A recorrência a entrevista de determinados autores é sempre uma ferramenta útil para compreender o processo no qual se envolvem quando se decidem criar, nisto expõem os mecanismos de sua ficção, mostrando o comportamento diante da página em branco, dividindo com o leitor a sensação de desamparo quando não conseguem realizar como pretendiam o trabalho em que estavam envolvidos.

A Revista Malagueta – revistamalagueta.com – um sítio virtual que acolhe parte da produção literária contemporânea, abriga uma série de entrevistas que juntam dois escritores, geralmente de tendências diferentes, submetendo-os a um questionário elaborado pela equipe do sítio, levando em conta as idéias de Zadie Smith, escritora inglesa, autora do ensaio Fail better.

A surpresa destas entrevistas é o menosprezo com que a maioria dos escritores trata a figura do leitor, chicoteando-o para fora de suas ambições, eliminando a concepção do leitor implícito, de Wolfgang Iser, que defende que há uma parceria criativa entre o escritor e seu público, deste encontro (re) nasce o sentido da obra realizada. Como se este leitor pudesse renová-la toda vez cercada de novos símbolos culturais.

O primeiro exemplo, subestima o leitor, tratando de desancá-lo, como se sua presença fosse prejudicial tanto do ponto de vista criativo quanto critico, se ele pudesse ser detectado nas ambições do escritor isso o desclassificaria, sendo colocado por isto de lado pela parcela séria dos estudiosos.
“Quando escrevo um romance, o leitor é um animalzinho tão distante que não posso me preocupar com ele. Muito menos em entretê-lo. Na verdade, quero é fazer um pouco mais de sentido, contar à história que preciso e sobreviver até a próxima página. Sinceramente, não preciso de leitor algum para continuar escrevendo. Escreveria mesmo se não fosse publicado”.João Paulo Cuenca.
A afirmação do escritor carioca João Paulo Cuenca é incoerente. Porque o escritor é antes de tudo um leitor de si mesmo, tão potencializado, tão radical em sua maneira de ler que decide intervir na escrita, passando também a escrever sua versão para os relatos com que mantém contato. É ilegítima também a idéia de que não se escreve para um determinado leitor, mesmo imaginado. A parte que chama o leitor de “animalzinho” não será comentada por nós.

Outro autor, este gaúcho, Daniel Galera não consegue definir bem a figura desta entidade o leitor e saí com essa pérola:
“Não escrevo para ninguém específico. Escrevo para aquele ente absurdo que é a combinação do meu ego com todos os outros seres humanos”.
Imaginar o que seja a combinação do ego deste escritor com os outros seres humanos é um exercício de abstração grande demais, por conta disso o parceiro de entrevista de Galera, Milton Hatoum, amazonense, saía da discussão com argumento de mestre:
“Não tenho um leitor em mente. É impossível conhecer o leitor ou pensar num tipo de leitor”.

Cíntia Moscovitch,autora gaúcha, tem uma visão bastante particular, apesar de não levar em conta o leitor em sua resposta, diz enfática :
“Escritor não se preocupa em entreter, embora os livros possam ser entretenimento. O escritor tem um compromisso transcendente com seu trabalho”.
Se isto fosse pedido a Shakespeare quando escreveu suas peças, talvez parecesse loucura ao bardo, porque todos sabemos em que condições se apresentavam suas peças, para qual tipo de público se destinava. Outro escritor,desta vez paulista, que parece concordar em parte com o argumento de Cíntia Moscovitch é Marçal Aquino:
“Não tenho nenhum leitor em mente quando escrevo. Escrevo pra mim. Sou aquele que tem de ser convencido em primeiro lugar de que vale a pena compartilhar aquele escrito com outras pessoas. É absurdamente redutor considerar que o escritor contemporâneo pensa apenas em entretenimento. Talvez existam escritores com esse tipo de postura, mas não são, certamente, aqueles que amo, respeito e releio”.
Isto quer dizer,Faulkner não mereceria uma releitura? Lembremos que o escritor de o Som e Fúria foi muito requisitado pela indústria hollywoodiana, ainda assim mereceu uma orelha de Marçal Aquino. O que resta perguntar é a leitura não se trata de entretenimento? Isto deixaria muitos autores clássicos em apuros consideráveis se fosse levado ao pé da letra.

As entrevistas realizadas com isenção repercutem algumas vezes com ressentimento à figura do leitor, contudo cumprem o papel de apresentar as certezas e incertezas com que cada autor lida com os problemas ficcionais, o esboço do discurso intelectual que desenvolvem em torno de temas que lhes são caros, pontuam também deficiências na capacidade de avaliar este outro – O LEITOR – porque em parte, mesmo subestimado durante a atividade intelectual, é este leitor – indefinível – que faz com que desapareçam com mais ou menos rapidez os volumes das prateleiras, portanto é melhor tratá-lo bem, mesmo que não se lhe reconheça a cara.

Comentários

Agulha3al disse…
Talvez Mariel esses escritores, se esqueça das dez leis do leitor escritas por Daniel Penac, no livro como um romance... e talvez esses animaizinhos utilizem o direito de não ler...
Unknown disse…
É a continuação, meu bom Mariel, da tendência óbvia e irritante destes escritores em querer tratar a literatura como peça intocável, indiscutível - uma arte suprema que transcende a noção de entretenimento, está em um posto muito além no pódio da maestria artística. Para isso, não precisaria de leitores, contestadores ou concordantes, porque ela, por si só, a SUA LITERATURA, santa e pessoal, serviria por si própria e teria sentido único em existir em si mesma. É tão suprema que só sua existência já é razão de ela própria existir. A cobra mordendo o próprio rabo? É, Mariel...

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