Orfandade

O rapaz retira do bolso o exemplar do meu livro. Carrega no lugar da carteira. Se alguém tentar bater-lhe o livro não ficará triste, porque de certa forma estará prestando um favor ao ladrão, a intenção de alfabetizá-lo, instruí-lo mais sobre o mundo que o cerca. Se eu fosse o ladrão me desgostaria profundamente, porque livros não têm o capital necessário para se pagar à conta de luz no fim do mês, o máximo de combustível que dão à vida de alguém é o sonho, e, para alguém do mundo de hoje há maneiras muito mais diretas de entrar em contato com o mundo onírico do que folhear as páginas de um volume insosso. Não comunico ao rapaz minha impressão sobre a sua espécie de ajuda social ao ladrão, colocando o livro no lugar em que habitualmente ficaria a carteira; não quero contribuir para aqueles longos discursos que muitos leitores desenvolvem a respeito de uma certa humanidade espezinhada, não compreendida por nós, que pede a aceitação de suas diferenças, que implora socorro, que simplesmente ignoramos por nos ater à vida moderna, repleta de pressa e indiferença. É lindo, mas enche o saco. Ele quer saber sobre como escrevi uma das estórias, reclama do desleixo da revisora do livro, que alguns contos mereceriam uma análise maior por parte da crítica, todo o blá-blá-blá que educadamente ouço, dando respostas malcriadas, confirmando a imagem do resmungão, do ressentido, afinal ele queria sair dali com alguma coisa para contar para os amigos, eu não podia decepcioná-lo. Alinhei uns cem nomes que não significam nada particularmente para mim e desfiei o rosário de diatribes. Ele ponderava sobre tudo com muito respeito como se ouvisse meu testamento literário ou coisa parecida, fazia anotações mentais, discutia aquilo que lhe parecia absurdo ou que feria sua suscetibilidade; me esforçava para ofender sua inteligência, arriscava comentários infundados, dava pistas sobre uma neurose persecutória, o que o rapaz achava, ao final, fascinante. Tratava-se de uma entrevista em menor escala, algo que não queria parecer uma entrevista, talvez fosse um interrogatório. Era um interrogatório. Disse ao rapaz que não poderia responder a tudo, porque tinha muitas dúvidas a respeito de tudo, não conseguia me manter seguro por muito tempo de opiniões emitidas há dez minutos, que a incerteza era uma constante nos meus pensamentos, e se era realmente saudável um homem ter a respeito de tudo uma opinião formada, centrada e sólida, porque era bastante difícil ter sobre si mesmo algo desse tipo quanto mais ao resto das coisas. O rapaz duvidou da minha sinceridade, parecia espantado, porque eu não fazia parte dos fundamentalistas culturais – não da maneira que ele pensava. Expliquei que tenho um livro de normas na cabeceira da minha cama, nele está contido todas as regras que sigo para avaliar se um livro é realmente um bom livro, esse argumento parecia ter recuperado o ânimo do rapaz, um pouco confuso por minhas divagações anteriores. A isto ele deu atenção, acompanhando uma série de procedimentos inventados que despertavam um riso discreto de minha mulher, que, paciente, aguardava o final de toda a discussão para que jantássemos sem outra intromissão. O rapaz tinha inúmeras perguntas. Muitas delas difíceis para um escritor iniciante, porque até mesmo nós temos certa reserva em responder determinadas coisas, porque não estão muito claras dentro de nós, ou porque nunca nos preocupamos realmente com elas. Talvez nunca tenham passado por nossas cabeças, se não tivessem sido despertadas por um interlocutor, se não fizessem parte de um longo questionário de uma revista especializada. Quanto ao futuro e a tal unidade de que ele me perguntava eu disse não me preocupar muito sobre isso, porque todas as coisas ao final falam de uma mesma observação, insistem em se escrever sob formas diferentes, às vezes frágeis, então descartadas; outras, fortes, aí aproveitadas mais na frente em uma idéia que a comporte em seu bojo. O rapaz consulta o relógio. Não quer me atrapalhar, mas está a quase uma hora sentado na minha mesa. O garçom meu conhecido estranhava que aquela noite eu estivesse especialmente polido, sem as rugas habituais do meu comportamento. Então passa por minha mesa e diz ao novato, aproveita. Minha mulher pede para o rapaz que não se importe, porque ia dar uma voltinha. Isso já me fez o sangue subir, porque meu objetivo era jantar com ela, e não ficar respondendo a imbecilidades, mesmo que meus escritos tivessem algum valor não ficaria por aí apontando como se deve fazer para alguém ter as impressões certas a respeito deles ou de mim. Não agüentando mais a presença do rapaz, pedi que viesse noutro dia, porque precisava ficar a sós com minha mulher. Ele disse: “Por que não me pediu isso antes?” Tive vontade de esmurrá-lo, mas a proximidade da delegacia e a presença de testemunhas me inibiram. Levantamos para nos despedir. Acertamos uma próxima conversa. Não tinha sido incômodo nenhum, o que é isso, não levasse a mal meu mal humor, etc e tal, quando trocamos o aperto de mão, avistou a condução que se aproximava, entusiasmado correu para não perdê-la, acenou dentro do ônibus, só depois que retornei para minha mesa percebi que o livro continuava lá, esquecido pelo rapaz, sem autógrafo e órfão.

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