Capitulo I

A pelada era todo fim de semana. Sábado pela manhã a rapaziada se reunia, formava o time, distribuíam-se as camisas, escolhia-se o lado do campo no cara ou coroa, o jogo começava. Só que a coisa não era tão simples à primeira vista. A primeira etapa era tranqüila, percorria-se a rua, chamando-se de casa em casa os interessados na pelada. Muitos apareciam nas janelas estremunhados de sono, pedindo um pouco de paciência que em instante se arrumariam, se juntando a procissão, quando não deparávamos com algum cão danado por canelas moças, disposto a lidar com as peraltices da turma. Superada esta fase, chegava à hora de se distribuir as camisas, isso que dizer escolher o time. A zoada maior era neste momento, porque não se queria pernas de pau em nenhuma parte do campo, exceto no gol, porque ali atrapalhavam, menos. Parecia um pregão de feira quando se discutia por um e não por outro moleque, citavam-se as qualidades e defeitos como justificativa para a opção, algumas vezes beiravam a ofensa, coisa que se grave era resolvida na pancadaria, mas na maior parte do tempo acabava bem. Camisas distribuídas. Agora restava a escolha do lado do campo. Alguns davam grande importância a isso, porque se dizia que influía no resultado do ataque, no desempenho dos jogadores, no desenvolvimento de jogadas, etc e tal. Então o cara e coroa era repetido até que se satisfizesse a ambos os lados à necessidade de transparência e justiça no processo de escolha, outra coisa que se não ficasse bem acertada, o resultado era pancadaria do mesmo jeito, mas a maioria das vezes o arranca – rabo adiava-se para questões dentro da partida. O jogo começava. Às vezes duvidava-se da afirmação por se perceber no campo focos de discussões isoladas que não conseguiam ser contornada pelo juiz. Não entendo por que se aquilatava toda a questão por intermédio da violência. Talvez tivéssemos energia demais e não sabendo como gastá-la ou empregá-la em algo mais producente, dávamo-nos murros como boxeadores, desconfiava que o esporte que praticávamos era o errado, sentindo várias ocasiões à vontade de comunicá-lo aos demais. A pelada era todo fim de semana, vírgula. Porque às vezes chovia. O campinho não era coberto. Enchia-se de lama e outros bichos que tornavam impraticável o futebol. Sábado pela manhã, sim, talvez caiba verdade nisso, porque era o dia em que se folgava com maior alegria a chance do nosso pequeno campeonato, repleto de vaidades estabelecidas e outras por se consolidar. Os juizes e goleiros emperravam muitas vezes o andamento do jogo, por discutirem aspectos técnicos da jogada, a validade de determinados passes, a tolerância no uso de força, e, às vezes o beneficio escancarado de alguns favoritinhos. Desconfiava-se bastante de um gordinho que era juiz em maior parte dos jogos. Tinha jeito efeminado, andar rebolativo, pernas que não eram de garoto. Sabia-se estudioso de assuntos que encabulavam até os mais espertos. Espalhava-se a fama de fresco. Tinha sempre trocado no bolso para o refrigerante, mas era difícil convencê-lo sem cair em suas artimanhas. Posso passar a mãozinha no seu passarinho? Pago dez cruzeiros. E tinha gente que dizia não ver mal nisso. Um dia ele foi parar no hospital. O short ensangüentado. Não se sabia de história verdadeira, mas o cu estava estourado. Voltou uma semana depois. Perguntei a ele o que lhe tinha acontecido, ele revirou os olhos e disse “cobicei demais”. O término das partidas era sempre seguido de um festejo ruidoso. A casa de algum dos jogadores era escolhida em um sistema de rodízio, íamos todos para lá tomar banho de borracha, beber baré-cola, comer salgadinhos preparados pelas mães. Mesmo não se tendo muito jeito, sobrava tempo para a azaração nas matinês dos clubes da região. Não havia muito que se falar para elas, porque em tudo diferentes de nós, sabidas e mistérios que só havíamos tocado com as pontas dos dedos, isso literalmente, sem intenção em fazer literatura de um detalhe sórdido como este, as meninas se juntavam à nossa mesa, receptivas, olhando com cuidado todos, decidindo com quem brincariam de salada mista, misturando insinuações às inocentes observações dos mais calados, os mais sabidos já metiam as mãos sob as saiais, assanhados, procurando aquilo que lhes interessavam. Outros metidos consigo mesmo não arranjavam modo para iniciar uma conversa sem ser tachado de bobo. As meninas ajudavam, incentivavam, tomavam a frente quando não se tinha outra coisa a fazer. Certa semana viram um menino novo na região. Andava de mão dada a um senhor forte, de pele avermelhada, sobrancelhas grossas, unidas sobre o nariz. Nunca o tinham notado por aquelas bandas. Era bem diferente dos demais. Também não estava no colégio. O senhor falava uma língua enrolada, não se podia entender muito o que dizia. Alguém comentava “é alemão” como se fosse pecado alguém ser de outra terra. Não se sabia nada a respeito dele, a não ser que tinha um sítio próximo do campinho onde batíamos a pelada, que morava sozinho com o menino, que não se via mulher naquela casa, que se espalhava maldades a respeito do comportamento do velho. Ele nunca era visto na missa. Na mercearia aparecia uma vez por mês com uma lista do que precisava, mandava entregar as mercadorias diretos no sítio. O menino era quem abria a porteira para a passagem do empregado da mercearia. As entregas eram feitas de bicicleta. O velho não dava gorjetas, pelo menos era o que dizia o empregado da mercearia. E não saía do lado de um rádio estranho que sempre procurava sintonizar em uma faixa de língua estrangeira, ficava falando sozinho, parava em posições estranhas, como se prestasse continência, arremedava algumas palavras com o braço esticado, o corpo ereto, olhava para uma terra que não existia. Velho doido. Uma vez a bola caiu no pátio do sitio. O menino veio devolvê-la. Nesse dia tinha vestido uma camisa com estampa de um aviãozinho monomotor da primeira guerra. Ele olhou intrigado para uma frase sobre o desenho. Indicou com o dedo. O que quer dizer? Ele não sabia? Disse a frase, ele repetiu. Repetiu mais uma vez como se fosse um bobo. Será que ele era bobo? Não sabíamos bem. Talvez ele tivesse dificuldades com a cartilha. Era natural. Todos tínhamos. Mas era uma frase tão fácil. Ele voltou para o interior do sítio. Ainda não sabíamos o nome dele. A pelada era todo fim de semana. Quem sabe na próxima ele não quereria participar. Poderia jogar no time.

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