Perfis Brasileiros V

A minha inscrição no inferno tinha alguns dígitos. A roupa não combinava com a ambição de me manter impecável para as mocinhas, nem os chinelos me emprestavam o ar de rei quando eu atravessava o corredor em direção à cela, mas nem por isso fiquei abatido. Não poderia, a peteca não pode cair e faz parte do jogo.Desde bem cedo, eu sei, o negócio é doido, mas não vou intrometer gíria nesse relato, estou me alfabetizando, a liminar que meu advogado impetrou, convenceu os “home”, agora freqüento o banco escolar, sem intenção nenhuma de fugir, isso é sincero, meu chapa. A vida lá fora não tá moleza, pelo menos aqui não pago aluguel, tenho, como se diz por aí, casa, comida e roupa lavada. Liberdade é um detalhe que a gente corrige, sempre que se pode chegar à janela, mas quem me garante que quem está lá fora é realmente livre? São por essas e por outras que vou mantendo a disciplina, ficando quietinho no meu canto, sem arrumar problema com ninguém, por mais que eles às vezes me procurem. Tento escapar, me esquivo, manjo longe quando a cana vai engrossar. E não posso perder o privilégio de ir até a escola, espiando pela janela do camburão a vida das pessoas, vendo os letreiros das novas lojas, as mocinhas desfilando de minissaia, as madames levando o cãozinho para passear, tudo isso de alguma maneira me ajuda, me fortalece, me afasta as neuroses, me liberta. Só não vem tirar farinha comigo, porque o bicho pega, não respeito nada, mas não quero juntar bronca, justo agora que estou diminuindo a pena com trabalho, quase me acertando como homem decente, doido para sair daqui e ir ver Irene : a mulata mais gostosa que um homem pode ter. Abraçar os guris, dar uma banda pelos parques, ver o sol, todos esses lances, que não tinham importância quando eu era mais novo, que só agora tem sentido, porque cansei de ser loca, dar moral para os otários. Agora se eu voltar para o crime tem que ser por cima, colarinho branco, carrão, diploma universitário, para ter cela privê, nada dessa cambada infernizando a mente, zoando o plantão, não dando trégua para ninguém. Se eu voltar tem que ser assim, por cima, isso ninguém me tira da cabeça, se tiver que ser carregado tem que ser no banco da frente, ao lado dos canas, sem algemas, vestindo paletó, cabelo arrumadinho, maletinha, tirando onda com os delegados, sendo chamado de senhor, tratado com reverência, sem dar mole para filhodaputa nenhum. Mas tenho que segurar o ódio, isso envenena, adoece a gente, adminstrar a perda, ser forte, esperar o dia da visita, aparentar que a vida aqui é um mar de rosas, quando tudo é piração. A nega sempre tenta aliviar, reclama da carestia, do custo das crianças no colégio, do aluguel altíssimo, ouvindo tudo isso me sinto privilegiado, gosto dessa palavra, privilégio, quero me esforçar para ser cada vez mais, para trazer isso para perto de mim, ter moral para ficar esparramado na cadeira, atrás de um baita mesão, só mandando, mas por enquanto é melhor me endireitar na fila, começa a contagem, vão trancar a gente. Agora luz do dia só daqui há uma semana. Cela forte para alguns, para outros o bem bom da convivência com os demais, lutando por espaço, cela com capacidade para 20 e já tem mais de 60 enfiado, neguinho botando pelo ladrão. Às vezes a liberdade faz falta, corrijo o pensamento, lá fora seria pior, eu sei. Ontem me deram a notícia de um companheiro que se matou, é foda, não encontrou maneira de viver, quinze anos de tranca, desaprendeu, não agüentou. Eu também tenho medo. Não posso amarelar. Dar na pinta. Porque frouxo aqui dança.

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