Berliner e o Vazio da Crítica
A primeira
dúvida quanto à visita da exposição de pinturas de Eduardo Berliner, no Centro
Cultural Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, surgiu em uma pesquisa realizada
sobre as matérias críticas em relação ao trabalho desenvolvido por esse carioca
nascido em 1978, cujo alcance da obra extrapolou as fronteiras do país. Tendo
trabalhos espalhados em diversas galerias do mundo, como por exemplo, Saatchi
Gallery em Londres, a recepção crítica em seu país de origem apresenta
dificuldades na compreensão de sua pintura. Ou, apenas reforça o estereótipo
criado em torno de uma arte tão vilipendiada – a pintura - que não possui mais
espectadores tão atentos quanto no passado, onde um escritor como Émile Zola
ocupava seu espírito com as pinturas de Eduard Manet em longos e meticulosos
artigos, investigando suas qualidades e deficiências.
Os artigos
encontrados sobre Eduardo Berliner reforçam o trivial dito sobre pintura,
ressaltando-o, como um indicativo do talento do pintor, quando não passa de
atributo básico para o exercício do ofício. E apóia-se de tal modo em jargões
tão correntes que não se pode mais tomá-los como vícios de uma crítica cansada
de si mesma, por repetir indefinidamente os mesmos conceitos, mas como uma
impertinência que provoca a indignação do espectador mais ou menos atento,
sendo ele um consumidor de cultura.
Como exemplo,
podemos citar trechos como estes, encontrados amiúde no ambiente virtual, que
pontificam acerca do fenômeno pictórico de Berliner “é um particular trabalho
em que o olhar atua” ou “a narrativa subjacente aos trabalhos impressiona”,
tomando por extraordinários aspectos comezinhos e enredando o leitor
desinformado em lugares comuns arrolados como centro de uma crítica séria. E não
é apenas no campo das artes plásticas em que um equívoco interpretativo como
este se dá; na literatura, isto é mais freqüente do que se parece. Como não há
um exercício contínuo de vigilância da crítica sobre si mesma ou de editores
realmente atentos para discuti-la, sem ranço ideológico, não haverá nenhuma
correção de rumo.
Para ilustrar,
na literatura, especificamente na área ensaística, a pobreza de balizas
críticas, tomo como exemplo a coleção Ciranda de Poesia, coordenada por Ítalo
Moriconi, cujo exemplar sobre o poeta Armando Freitas Filho, é apresentado pelo
crítico Renan Nuernberger. Nele a declaração de Sebastião Uchoa Leite, também
poeta, serve para exemplificar a falta de esforço interpretativo, quando afirma
que o trabalho do seu colega de ofício, o autor de Lar,, está calcado no
binômio: poesia e vida. Há na sentença algum gesto interpretativo? Ou é apenas
uma afirmação banalíssima? É todo esse o instrumental de certa crítica
contemporânea - seja ela nas artes plásticas ou na literatura.
Colocada, às
claras, a defasagem de uma parcela da crítica contemporânea que se viciou na
reprodução de releases e, perigosamente, abriu mão de seu direito de opinar,
para o bem ou para o mal, sobre o que é produzido atualmente; influenciada
muito mais pelas relações interpessoais do que propriamente pela qualidade
estética assentada sobre as obras; preferindo esquivar-se do compromisso da
formação crítica do público; amesquinhada em coquetéis de lançamento e
vernissages, pretendo, em desafeto a esta parcela da crítica, contrapô-la com
argumentos acerca do trabalho de Eduardo Berliner, para aproximá-lo do pintor
Francis Bacon.
A minha
reflexão, tem como base o texto do escritor Milan Kundera, autor do livro O
Encontro, a respeito do pintor Francis Bacon, do qual transcrevo o trecho
abaixo:
“E é por isso
que a palavra “horror”, que se aplica obstinadamente à sua pintura, o irrita.
Tolstói dizia sobre Leonid Andreiev e seus romances noirs: “ele quer me
assustar, mas não tenho medo”. Existem hoje muitas pinturas que querem nos
assustar, mas nos entediam. O temor não é uma sensação estética e o horror que
encontramos nos romances de Tolstói nunca está ali para nos assustar; a cena
emocionante na qual operam sem anestesia André Bolkonski, mortalmente ferido, não
é desprovida de beleza; como nunca é desprovida de beleza uma cena de
Shakespeare; como jamais é desprovido de beleza um quadro de Bacon.”
Retomada a
afirmação de Tolstói sobre Andreiev, é percebida a intenção do pintor – Eduardo
Berliner - em assustar o espectador que entra em contato com o seu universo.
Contudo, não logra êxito, devido a um cotidiano inflacionado de violência em
que as narrativas jornalísticas não retiram da indiferença o homem
contemporâneo, não provocando nele o deslocamento que a emoção estética
promete.
Embora em toda
a pintura de Berliner os objetos constituam enigmas propostos ao espectador, há
o incômodo em reconhecer nos elementos constituintes de seu trabalho a presença
de um surrealismo tardio – remanescente das ruínas pós-modernas ou o enlace
aflitivo à vala do realismo.
Em que o
artista espera amparar sua pintura? Apenas na ilogicidade do real? Não
representará pouco? Não há em Eduardo Berliner a independência espiritual
conquistada por Francis Bacon, mesmo que atuem com a mesma gramática –
deformadora; não há a coragem de tomar para si a realidade e devolvê-la sem o
temor de nunca ter um de seus trabalhos exibidos em uma sala de jantar ou no
saguão de aeroporto.
Por que
Eduardo Berliner teme tomar como sua a realidade quando possui as condições
para fazê-lo? Por que se opõe ao caráter deformador/desfigurador de sua
pintura, se, evidentemente, nos fornece traços de que não é um artista
convencional?
Prova disso
está na exposição, nos contrastes que as pequenas aquarelas criam, dissipando
toda a tensão incitada pelas telas maiores.
No entanto,
Eduardo Berliner, durante suas entrevistas, demonstra oposição ao gosto pelo
aleatório. Reafirma seu gosto pela desconstrução como meio para a composição de
obra, mas esse caos não é transposto como resultado para a tela,
desinstalando-o, imediatamente, do modus operandi da pintura de Francis Bacon,
orientada para a negação de um cartesianismo castrativo.
Durante a
exposição é possível ouvir apontamentos dos espectadores sobre as obras
expostas. E descobrem, naquele quadro que representa uma mulher que detêm em
cada uma de suas mãos uma cobra coral e um lagarto sobre uma passadeira de
roupas, enquanto é observada por um menino deitado sob esta última, uma
alegoria sobre o desejo; e, no outro, em que um homem com fantasia de monstro,
despenando o que parecem anjinhos, uma correlação com a queda do homem. Acessos
frágeis e fáceis demais, mas um bom caminho para determinada parcela da
crítica, que de algum modo, está morta e vive de sua própria anomia.
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