Confira um novo texto do poeta Reinaldo Ramos


O Counter Strike Nosso de Cada Dia
A opinião pública quer super-heróis. Quer o capitão Nascimento. Acredita que os policiais do BOPE são super-homens. Acredita que as UPP's estão acabando com o crime. A opinião pública acha charmosa e viril a truculência da polícia, porque além de machista, ela representa uma sociedade na qual se produziu o senso comum de que nossos problemas crônicos são insolúveis - em especial a criminalidade. A truculência é confundida com autoridade. Nosso ranço aristocrático e ditatorial dá um acréscimo de charme em ser autoritário quando se tem o mínimo de poder, quando se tem uma cabeça subalterna pra esmagar embaixo do coturno, da toga ou do anel de "doutor".
A opinião pública não acredita na lei. Desrespeitar a lei está no DNA de nossa sociedade. E quem aplaude uma ação que viola abertamente a lei, o bom senso e a dignidade humana, também faz por merecer, infelizmente, viver em uma sociedade corrompida e com elevados índices de criminalidade. Nossa sociedade aprende desde cedo a desconfiar das leis e a confiar no compadrio, nos conchavos, nos "contatos certos", no personalismo. Não satisfeitos em não acreditar nas leis ou considerá-las no máximo “sugestões de conduta" e não a autoridade suprema em um estado de direito (talvez por ser “demasiado abstrata”  defender a lei vez ou outra é classificado como “coisa de pseudointelectual maconheiro de esquerda" – em especial quando se fala em “direitos humanos”), contribuímos em cada mínima oportunidade para lhe esvaziar  ainda mais sua autoridade, tratando como semideuses as figuras que a "encarnam" – em lugar  de zelar de maneira impessoal pelo seu cumprimento. A autoridade não deveria estar nas pessoas, e sim nas leis e nas instituições responsáveis por sua execução e elaboração. Mas admiramos personalidades fortes, ações viris, histriônicas, messiânicas, redentoras. Cultuamos "reis" e "rainhas" de qualquer coisa (muito representativa a escolha semibiônica de um "caçador de marajás" com “aquilo roxo” fabricado de última hora para a presidência em 1989).
Quando uma polícia mal treinada e plena de rancores recebe um salvo conduto da opinião pública pra largar o dedo no gatilho não importa qual seja o alvo, ficamos diante de um quadro profundamente temerário. Fala-se muito que os defensores dos direitos humanos sustentam suas opiniões porque vivem no conforto da abstração teórica, que nunca sentiram na pele a dor da violência perpetrada por um “marginal”. E os que defendem uma polícia com licença plena para matar? Já sentiram a dor de perder um filho, um marido, um pai por um disparo irresponsável de uma arma portada por um servidor público que prestou juramento para servir e proteger a sociedade? Ao menos o bandido quanto mata alguém não está cometendo nenhuma traição – porque não jurou nada antes, muito menos proteger e servir a quem quer que seja. Não tem compromisso nenhum com nada, a não ser consigo mesmo e seus impulsos delituosos.
Instituição e servidor que descumpre a lei, mesmo sob os aplausos da opinião pública, empurra todo o esforço de construir uma sociedade mais igual e justa ladeira abaixo. Essa é a mesma opinião pública que pensa ser este país um país dominado por "corruptos" (diagnóstico rápido e pretensamente suficiente para explicar todos os males da nação). Opinião pública que aplaude de pé o descumprimento da lei e não se percebe produto do mesmo barro que moldou seus governantes (e seus concidadãos - porque "o outro" sempre leva a culpa também), dos quais usa o comportamento ilícito como desculpa permanente para querer fazer legítimo seu hábito incorrigível de descumprir as leis ao sabor de sua conveniência.
Opinião pública que louva a truculência e o abuso - desde que seja para os outros a quem julga "inferiores" enquanto pessoas (se é que não estou sendo otimista quando quero crer que chegam a atribuir esse valor de "pessoa" a eles - ao menos no mesmo patamar em que enxergam a si mesmos e aos seus). Opinião pública que até admite sofrer abuso desde que tenha alguém mais abaixo de si para poder transferir o abuso sofrido. Opinião pública que se percebe como pura, honesta, justa e projeta a maldade, a feiura, o desprezível sempre no vizinho, no estranho, no diferente.
O pobre sustenta o sadismo social da classe média. Dentro da favela, não há estado. Logo, não há lei. Pobre, sinônimo de bandido. Pobreza, sinônimo de vida com menos valor. A limpeza étnica não pode parar. Desde 1500 seguimos matando e escravizando quem escapa do nosso projeto de "civilização perfeita", isto é, as carnes mais baratas do nosso mercado de trabalho. Estejamos alertas, porque segundo essa lógica torpe, se matarem todos os pobres por efeito colateral tolerável do combate à criminalidade não teremos mais as "tias da limpeza", nossos prédios ficarão sem porteiros e zeladores, nossas obras ficarão sem serventes, escolas sem merendeiras, copeiras, restaurantes sem garçons, empresas sem motoboys e contínuos... O McDonald's e os supermercados vão fechar as portas porque não terão mais a quem explorar com o máximo de lucro e o mínimo de benefícios trabalhistas. Concluindo, todos aqueles que se encontram no espectro da invisibilidade social e que possuem direitos mínimos negados desde o berço (como frequentar boas escolas, serem atendidos em bons hospitais ou transitarem em shopping centers sem serem olhados de soslaio quando não usam algum uniforme que demarque sua distinção de serviçal) são exatamente os trabalhadores mais importantes na estrutura da nossa cadeia produtiva e que ficam expostos, sem escudo físico ou jurídico diante das balas traçantes, não importa de qual cano saiam, se dos “mocinhos” ou dos “bandidos”.
Mataram um bandido. Bravo! Lindo! Incrível! Mais um cubo de gelo enxugado pelo nosso exemplar aparato policial, pelos nossos prestativos protetores, pelos nossos bravos heróis no meio de um deserto glacial de violência com dimensões continentais, gerado a eras e eras atrás. A máquina de moer gente não vai parar. O sangue vai seguir espirrando na arena, para o gáudio da plateia sedenta de justiça rápida, de rito sumário. Seja o sangue dos bandidos repulsivos, seja o sangue de um ou de outro mal nascido joão qualquer. Quem endossa o extermínio dos pobres e todo tipo de abuso de poder somos nós, quando aberta ou cinicamente acreditamos que existem pessoas e cidadãos de primeira, segunda e terceira categoria, especialmente conforme o valor de seus IPTU's e o tamanho e a potência de seus automóveis. Só mudamos de opinião quando estas crenças acabam por voltar-se contra nós mesmos - mesmo que por pouquíssimo tempo.

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