Um conto


Estátua de Sal

Ele me avisou pra não olhar pra trás.
Um corredor de bombeiros, policiais, repórteres e assistentes socais cercavam a minha partida. Minha garganta e os meus olhos ardiam com tanta fumaça. Meu pai me abraçou forte e a gente logo conseguiu chegar até a avenida. As viaturas da polícia e do bombeiro atravessadas na pista. O trânsito desviado. Um helicóptero sobrevoava todo o lugar. Minha mãe e minha irmã desaparecidas.
Numa perua, uma mulher distribuía comida e água para os moradores que haviam perdido tudo no incêndio. Prometiam a assistência do governador aos desabrigados. Meu pai não parava de chorar. Os noticiários só falavam das buscas, dos desaparecidos e da hipótese de o incêndio ter sido criminoso. Abracei meu pai. Uma nuvem de fumaça negra subia aos céus.  Eu não podia olhar para trás. O hálito do fogo batia nas minhas pernas. Era feito aquela história contada lá na igreja: se eu olhasse pra trás viraria uma estátua de sal.
 Meu pai não agüentou. Levantou-se e andou na direção do fogo. Ordenou-me que ficasse ali, parado, até a sua volta. Os policiais fizeram um cerco de isolamento. Ninguém mais podia se aproximar. Meu pai ficou por ali como se não quisesse nada: de um lado pro outro. E quando percebeu a distração policial, atravessou o isolamento e se atirou nas chamas. Fiquei gritando: Pai! Pai! Ele não me ouvia.
A mulher da combi me deu mais um guaraná e um sanduíche. O grupo de policiais, bombeiros e assistentes sociais conversavam entre si e me apontavam.
Eu estava sozinho.
Meu pai sempre me disse que isso um dia aconteceria.  Uma mulher loira veio perto de mim e fez algumas perguntas. Você vai ter outra família. Uma fila de crianças formava-se perto de um ônibus. Na porta, outra mulher, gorda, de óculos engraçados, perguntava o nome completo e a idade de cada um que ela mandava entrar dentro do carro.
Quando chegou a minha vez.
Dei as informações. “É um rapazinho, hein.” O ônibus sacolejava. A instrutora explicou que agora todos ali éramos órfãos e íamos para um abrigo. Pensem no futuro, apenas no futuro, orientava. E não olhem para trás.
Desobedeci.
Fui para a traseira do veículo. A fumaça rolava pelo ar e as faíscas atingiam as nuvens. De quando em vez, uma explosão. Ainda ouvia as sirenes.  Senti as mãos da instrutora pousadas em meus ombros.

 Publicado em: 
http://www.mallarmargens.com/2013/05/conto-de-mariel-reis.html

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