Baixada Fluminense: Uma Interseção de Intenções
Aguinaldo Silva,
atualmente escritor de novelas da emissora de televisão Globo, com vários
sucessos em seu currículo, tem suas histórias exibidas no horário nobre do
canal televisivo. Um de seus sucessos recentes foi a novela Senhora do Destino.
A trama se passava em um fictício distrito – Vila São Miguel - em Duque de
Caxias, colocando em evidência a baixada Fluminense. O nome da protagonista da
novela, Maria do Carmo, faz alusão à mãe do autor, ficando-lhe como uma
homenagem. A atriz que encarnava Maria do Carmo era Suzana Vieira. O sucesso de
público da telenovela indicou que as tramas não necessitavam se passar no
exterior para exercer atração sobre o público que experimentava a ascensão
econômica pelo desdobramento da política monetária herdada por Lula de FHC,
bastando apenas que se escrevesse sobre as vidas das pessoas comuns com
interesse e respeito. Sem demonizações. Cada vez mais raras nas obras
dramatúrgicas televisivas.
Um último exemplo
que pode ser invocado aqui para confirmar isso foi a novela de João Emanuel
Carneiro: Avenida Brasil. Ambas as produções marcam a ascensão da classe C e
registram a mobilidade social promovida nos últimos anos pelos governos Lula e
FHC.
João Emanuel
Carneiro através da novela Avenida Brasil aborda o território da Baixada
Fluminense: o desativado lixão de Gramacho, coincidentemente também em
Caxias.
Na obra dramatúrgica de Emanuel Carneiro
ensaia-se uma vingança encabeçada por Nina (Débora Falabella) contra Carminha
(Adriana Esteves) e para realizá-la nada será poupado.
Uma intensa
discussão ética é travada por toda a novela. O público é arrebatado pelas
reviravoltas mirabolantes e planos de vingança de Nina e Carminha. Não apenas a
classe C está imantada ao televisor, mas intelectuais discutem o conteúdo
sociológico do está sendo exibido durante o horário nobre da emissora. O
cineasta e escritor Arnaldo Jabor, em coluna no jornal Estado de São Paulo,
lamenta-se através do título do artigo “Avenida Brasil está acabando...” e
inicia seu texto da seguinte maneira:
Que saudades vou
ter do Leleco, do Tufão, das peruas do subúrbio, gritadeiras e barraqueiras,
que saudades da dupla de atrizes geniais apaixonadas pelo ódio, Carminha e Rita
(não esqueço dos rugidos de fera de Adriana Esteves, desde o dia em que ela
‘comeu’ literalmente o Tufão pela primeira vez, como se fosse um bicho
devorando-o com a boca), da Ivana, da grande Zezé e Janaina e principalmente do
Max, o nosso Maxwell, o famoso malandro-agulha, finalmente retratado na TV
('malandro-agulha', sabe-o Joaquim F. dos Santos, é aquele que "toma no
buraco, mas não perde a linha...").
O resto do artigo prossegue com
elogios à produção televisiva, que vale a pena reproduzir, porque procede à
análise sociológica em questão da sociedade brasileira:
Essa novela é um
buraco novo na teledramaturgia. Partiram para fazer uma novela ‘para’ a classe
C e tudo acabou virando uma novela da classe C para o País todo. Não é uma
trama feita ‘para’ o subúrbio; é o subúrbio e seus personagens que fizeram a
novela, criando uma espécie de realismo crítico em que os heróis não são mais
comandados pela ideologia dos autores, como objetos de um folhetim ‘social’,
como fazia a velha ‘arte engajada’. A chamada arte social de filmes e livros
tratava de excluídos ou de suburbanos como um conceito geral e sua intenção era
‘conscientizá-los’ sobre sua ‘alienação’, como os autores decidiam. Aqui, não.
O subúrbio finalmente apareceu na TV, sem folclore e sem ideologias. Eu fui
criado no Rocha, na antiga rua Guimarães, atual Alm. Ary Parreiras e sei do que
falo. Claro que não é só aquela ilha de solidariedade que a novela mostra, mas
tem, sim, um clima brasileiro vivo, uma doçura na precariedade de seus
moradores que não há na zona sul. Aqui, os heróis são sujeitos da ação. E o
resultado foi incrível, porque descobrimos maravilhados que o universo C é
muito mais rico em revelações de comportamento sobre a vida brasileira do que a
mortiça ZS, sem vizinhos, sem fofocas. Nelson Rodrigues dizia que "a
novela mata nossa fome por mentiras", mas essa novela matou nossa fome de
verdades.
A picada aberta por Aguinaldo Silva foi
bem aproveitada por João Emanuel Carneiro. A confirmação pode ser percebida nas
polêmicas acerca da trama, a troca de farpas e elogios entre os autores.
Contudo, não se pode negar a Aguinaldo Silva a radiografia da
região da Baixada Fluminense; oriunda do tempo em que atuava como repórter
policial. Produzira o livro Esquadrão da Morte, orientando o seu olhar para uma
fatia da realidade que não ganhava as páginas policiais com frequência, durante
o período do regime militar, que não admitia participação nas chacinas nas
regiões remotas da cidade. E nem admitia também que, além dos subversivos,
havia a ladroagem comum, plasmada em Lili Carabina. O advento da
mulher no crime refletia, mal ou bem, a presença de alguém do sexo feminino em
um universo masculino. A História de Lili Carabina: um romance da Baixada
Fluminense, como era conhecido. A obra mereceu uma adaptação cinematográfica e
Betty Faria deu vida à vilã.
Outro escritor brasileiro, José Louzeiro, deu
relevo às questões da violência na região da Baixada Fluminense. O caso Mão
Branca é o mais ilustrativo para ser trazido à baila ao contexto do artigo. Mão
Branca era um justiceiro, ganhou fama na imprensa durante as décadas de setenta
e oitenta. O autor maranhense, radicado no Rio de Janeiro, compartilha da mesma
experiência de Aguinaldo Silva, porque também atuou como repórter
policial durante anos em sua carreira, abandonando a profissão para tornar-se
escritor, devido à instalação do AI-5, que implantava a censura no país,
impedindo-o de escrever a sua versão dos fatos nos jornais. A imprensa estava
presa a versão oficial dos atos de violência perpetrados pelo Estado.
O estigma da violência foi durante muito tempo
sinônimo da Baixada Fluminense. A instalação de ONGs, a presença de um
policiamento ostensivo e a diminuição da corrupção na máquina administrativa,
representou um avanço para a melhoria da região. Inúmeras ações afirmativas
espalharam-se como o pré – vestibular para negros e carentes, orientado, à
época, pelo Frei David, que realizava missas negras católicas
em que levava em consideração o fator étnico da população frequentadora. Todo o
material acima quer gerar uma reflexão sobre as histórias que se entrecruzam,
sobre a importância da memória e a necessidade de ação da sociedade civil para
a ocorrência de transformações.
Nas telenovelas comentadas não há mais o
maniqueísmo da década de setenta em que se tinha claramente o bandido e o
mocinho. O acesso aos bens de consumo e serviços é exibido como também o acesso
a informação. O programa Baixada Digital é o exemplo dessa tentativa de
inclusão. É a história do lugar e das pessoas contadas por elas mesmas e não
por estrangeiros. Assumindo o compromisso como protagonistas da nossa História,
seremos os sujeitos a produzi-la e a gerenciá-la.
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