Outra História Sobre Hanisch.

Para Joseane e Aurea

Hanisch era um homem jovem. O futuro não lhe passava pela cabeça, a não ser como uma leve sombra, mas sem causar incômodo. Trabalhava em um sítio como jardineiro. O espírito afeito à beleza rendia-lhe elogios, devido ao bom gosto com que mantinha seus canteiros. Não se inquietava com os problemas, então nada lhe turvava o caminho.

O sítio em que trabalhava era uma propriedade antiga na vila. A severidade do proprietário era admirada e temida e todos se espantavam porque a natureza cordial do jardineiro nunca havia se chocado com o temperamento agressivo de seu patrão. Todos louvavam a paciência com que o jardineiro se conduzia, desviando-se dos entreveros e sabiamente concordando com aquilo que o destino lhe reservara, mesmo que avaro.

O pendor artístico de Hanisch era observado com desprezo pelo proprietário do sítio. Quando seu jardineiro não estava por perto, procurava destruir-lhe o capricho, como se aquilo representasse uma afronta pessoal a ele, como se aquela beleza não pudesse pertencer-lhe porque estava apegada ao interior daquele seu serviçal.

Quando Hanisch voltava ao trabalho não deixava de perceber que todo o serviço feito na véspera estava desperdiçado.

O patrão culpava a sanha dos cães que tinha: quando soltos à noite, perseguindo algum animal de toca, reviravam a terra. A conversa se encerrava com esses argumentos, porque logo o jardineiro voltava silencioso ao trabalho, desconfiando que a verdade não estivesse metida nas palavras do seu patrão.

Os dias se passavam sem que nada interrompesse o ciclo estranho de destruição que aquele homem submetia às flores, experimentando um prazer doentio em ver seu empregado refazendo, com esforço, a beleza do jardim. Talvez a beleza que habitasse o interior do seu serviçal esplendesse de modo tamanho que o cegasse.

Como ele pode ser habitado por tamanha harmonia? As respostas lhe faltavam.

Hanisch recomeçava seu trabalho certo de sua inutilidade. Mas precisava do emprego e, apegado que era ao jardim, não se cansava de envidar esforços para recuperá-lo. E por longos dias reconstituía-o parte por parte. Comprava sementes, adubos, novas ferramentas, tudo consentido pelo patrão que não cessava de vigiá-lo.

“As mãos dele - o proprietário arriscava em frenesi - sim, suas mãos, são delas que surgem à beleza do meu jardim”.

Passou a espreitá-lo, seguia-o com cuidado, dando a entender que apenas se interessava pelo trato com a terra, mas não desgrudava os olhos das mãos de seu jardineiro. Parecia saído de um conto moral oriental a sua história, porque sua intenção era aprisionar a beleza para que tudo se parecesse com o seu intimo sombrio e desértico. Espreitava as fraquezas de seu empregado, vendo nele o pendor para a bebida.

Estreitava os laços com Hanisch, como se pudessem patrão e empregado ser camaradas, sem que nisso se intrometesse a diferença entre eles.

Certa noite chuvosa, impedido de ir para sua casa, porque a região onde vivia alagava, pediu ao seu patrão para ficar por ali, porque temia ser levado pelas correntezas caso se arriscasse a travessia. Nisto, a idéia que se arquitetava no espírito do patrão veio à tona, encontrando ressonância em seu íntimo. Chegara a oportunidade de livrar-se daquelas mãos que construíam com ainda mais beleza o mundo ao derredor de si.

“Sinta-se à vontade” disse o patrão, já a caminho da cozinha, em busca de uma bebida forte para os dois. Sabia da fraqueza de Hanisch, e não se pouparia de explorá-la.

Conversaram até altas horas sobre tudo o que dois homens podem conversar, sem nenhum tipo de censura. Cada um contou ao seu modo como viera dar ali naquela existência e o modo como se sentiam.

- Não me sinto confortável em fazer-lhe confidências dessa natureza, mas estou aqui com um irmão – disse o patrão.

Comovido, o jardineiro não tinha palavras para agradecer a confiança depositada em si e não se furtou em contar passagens pouco conhecidas de sua trajetória por essa terra, onde se misturavam o terrível com o milagre.

Dormiria no barracão onde estavam guardados os sacos de sementes e ferramentas, nos fundos da propriedade.

- Hanisch, como pode ter a beleza escolhido você como morada? Explica-me se é assim o tempo todo? Se tudo o que você toca floresce desta maneira como aqui na herdade.

A sorte parecia lhe ter reservado para isto, começou o jardineiro, e talvez isso fosse o único bem que ainda o destino lhe reservara sem golpeá-lo com uma traição. Estas palavras pareciam ter alcançado algum lugar dentro do proprietário, porque se via em seus olhos um brilho úmido embaçando-lhes. Como poderia também se atribuir isso ao efeito da bebida.

Vou me deitar, disse. Levantou-se cambaleante, apoiando-se nos móveis para encontrar a saída da casa. Lançou um último olhar ao patrão para saber se este ainda precisaria dos seus serviços, porque, nem mesmo neste momento, a consciência não o deixava em paz em relação as suas obrigações como empregado, mesmo que estivesse adormecido pelo efeito embriagante do álcool.

- Pode ir se recolher. – disse o patrão, sem voltar-se para ele, Hanisch, que já sumia nas sombras do quintal.

Aquelas palavras alcançaram dentro do patrão um lugar que pouco visitava, mas, quando algo era dito assim de modo tão sincero e puro, transportava-se por inteiro para essa região, ficando absorto em sua constatação de degradação pelo poder e pelo domínio.

Nas sombras, Hanisch arrastava seu corpo repleto de pecados. Porque não se importava em contar mentiras como aquela que a sorte o havia escolhido; muitas das vezes aquilo não passava da sombra da verdade e desta maneira, manifestando-se assim, agradava ao ouvinte que eventualmente lhe escutasse sobre o percurso nessa terra. Lembrava-se das dificuldades e das surras dadas pelo pai até aprender o oficio, as privações a que era submetido quando malograva a plantação pela qual estava responsável. Pensava em seu patrão, diluído entre a sombra e a distância, que ficara meditando sobre suas palavras, tomando-o por tolo.

Na noite se ouviam os ruídos dos animais, um vento sibilante correndo a copa das árvores, as nuvens amontoando-se sobre as montanhas longínquas como indicativo de tempo ruim, atestavam que a chuva não cessaria.

As mãos entorpecidas mal abriam caminho através da porta. O barracão não tinha iluminação de espécie alguma, ajeitou um saco de adubo de modo a parecer o possível com uma cama, abandonando o corpo que principiava a suar naquele ambiente abafado. Não se preocupou em trancar a porta, porque caso o patrão precisasse procurá-lo, não encontraria impedimento, ficando a vontade para vasculhar o lugar.

Tudo estava silencioso.

Longe, as luzes acesas do casarão dominavam a paisagem. Não se vislumbrava o vulto do proprietário do sítio, mas, se examinássemos bem, poderíamos vê-lo: sentado em sua cozinha, meditativo.

O sono investia lento como um pequeno exército pesando sobre as pálpebras Hanisch. A dormência nos músculos entrechocava-se com as visões da vigília, dançavam demônios sobre as prateleiras, insuflando-lhe desejos e idéias reprováveis. Por que, Hanisch, você não mata seu patrão? E corria por sobre as tábuas enlouquecidas, sumindo por uma fresta. O jardineiro custava a crer naquilo que seus olhos testemunhavam, julgando o delírio causado pelo efeito da bebida para a qual era tão fraco associado pela vizinhança do sono.

Logo cuidou para dissipar de sua mente a aparição, mas o demônio parecia insistir em seu propósito.

Hanisch desconhecia que o visitante demônio também aparecia para seu patrão, que em vez de ignorá-lo dava ouvidos ao pequeno ser das profundezas. Se ao jardineiro tentava com as riquezas do patrão, a cobiça deste repousava sobre outro aspecto de seu empregado: como poderia transferir aquele poder para si mesmo? Como? O demônio incitava-o a matar seu jardineiro e o resto se daria por conta de seus favores.

Por conta disso, o patrão levantou-se como hipnotizado, mas chegando as proximidades do barracão, viu que o jardineiro lutava aterrorizado contra as sombras. Percebeu que também ele era presa de visões como a que lhe tinha ocorrido. Algo se modificou em sua alma, porque em algum lugar ela existiria se condoendo da condição e sofrimento de seu empregado. E se ele resistia à mesma idéia proposta pelo demônio em matá-lo para arruiná-lo? Se aquilo fosse uma artimanha para que uma desgraça descesse sobre ambos? Hanisch observava um vulto vindo em sua direção, poderia ser o demônio, se ele tivesse se apoderado de algum bêbado das redondezas e intentasse matá-lo? Percorreu os olhos pelas ferramentas até deparar-se com a faca com que aparava os pequenos galhos das roseiras, manteve-a junto de si, como se esperasse para identificar melhor a ameaça.

O patrão do jardineiro estranhou a imobilidade em que estava seu empregado, julgou ser tarde demais, mas acautelou-se.

Então, quando já estavam a meia distância e prestes a se golpearem, refrearam seus ímpetos, impedindo que a tragédia se consumasse.

Ambos os homens riram, porque se confessaram a visita do demônio e seus motivos. Cada qual envergonhado por trazer no coração aquela mancha. Abraçaram-se e seguiram para o casarão, porque agora gargalhavam não de si mesmos, mas do demônio.





Comentários

Unknown disse…
Mariel...
Queria começar agradecendo de todo o meu coração!

Senti-me HANISCH.
Senti-me o Patrão.

Senti a riqueza de HANISCH.
Senti a riqueza do Patrão.

Senti o demônio que existe no coração do ser humano sob a forma do EGO.
Senti o caminho da busca pela eliminação do EGO....que hora acabamos por golpear hora acabamos por refrear....

Que possamos a cada dia rir dos demônios...

Beijo no coração.
JOSEANE AMORIM

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