Amor e Ditadura

Carta do leitor Jurandir de Oliveira para o concurso da revista Marie Claire sobre o tema: Encontrei o meu amor de maneira inesperada.

Naquele tempo eu era um rapaz sem pretensões. Trabalhava como bancário em uma agência no centro da cidade, torcia pelo América Futebol Clube e tinha preocupações com o país – era o ano de 1972. O Brasil vivia o auge da ditadura.
As perseguições eram comuns, o Comando de Caça aos Comunistas agia livremente prendendo e torturando inocentes em busca de informações sobre pessoas que conspiravam contra a segurança nacional; a Rua da Relação mais movimentada que nunca: um entra e saí de camburões carregados de rostos que não se veriam mais para desespero das famílias. Qualquer indício de uma reunião suspeita nos apartamentos era investigado e se constatado de que se tratava de assuntos políticos a complicação aumentava. A cor vermelha proibida expressamente por estar associada aos comunistas, socialistas e grupos afins.
Nisto encontrei minha primeira desgraça: a camisa do América não poderia ser de outra cor. Sugeri a mudança da cor do pavilhão do time pelo menos no tempo de exceção, mas viam nisto, pelo menos alguns dirigentes, o recado de que em algum lugar se resistia à violência praticada no país pelos generais trogloditas.
Isto me limitava a torcer com bandeirinhas tímidas, botons presos à camisa, para não entrar em cana como baderneiro. Já pelo pequeno relato se pode antever o que me aconteceu, mas descreverei por partes a minha desgraça e meu triunfo – porque através desse artifício obtive a proposta de redação da revista: Encontrei meu amor de forma inesperada.
Enquanto no trabalho, minha atenção não se desprendia do detalhe da cor vermelha, então tomava cuidado com qualquer realce que escapasse à minha inspeção. Certa vez um dos gorilas do governo me acompanhou com o olhar até a entrada do banco – o boton vermelho havia chamado à sua atenção, pensou ser a famigerada foice e o martelo, quando o exame terminou, já me encontrava dentro da agência, fora de perigo.
Em casa não me preocupava com a questão da cor – me sentia livre da vigilância das sentinelas do regime, andava à vontade como se nada pudesse me acontecer, imune ao ambiente hostil do país e com um ingresso para a partida de sábado no estádio do time em Mesquita.
Comecei os preparativos. Comprei um chapéu espalhafatoso e corneta. Encomendei uma camisa nova do América, guardada às sete chaves até o momento de vesti-la no sábado. A velha virou pano de chão. Comprei também um calção novinho em folha – tudo para que se o time tivesse um desfalque, o técnico me habilitasse para jogar pelo time. Estava uniformizado. Feliz com a perspectiva da vitória. A Taça Rio daquela vez viria. O sabor amargo da última campanha do time não havia sido esquecido pela torcida que protestou contra o presidente do clube que não deu à mínima na época sendo uma miniatura de Eurico Miranda – isso no quesito ditatorial.

O final do jogo com uma vitória que não convenceu, mas satisfez a torcida que saía do estádio com urros de "é campeão, é campeão!". Desviei-me da multidão, fui para o ponto de ônibus, seguindo sozinho por umas ruas que me levariam ao terminal rodoviário. Não me dava conta do tempo, pensando nas jogadas, criticando o futebol dos pernas de pau da última contratação, emendando o time com minhas interferências técnicas, julgando que só o futebol em um tempo como esse permitia ao povo extravasar as emoções sem que fosse tachado de manifestação política, que de alguma maneira o jogo ensaiava o problema social – isso em uma visão primária e esquemática – quando uma patrulhinha cruzou comigo.
Não era uma novidade a polícia estar ao redor do estádio, cuidando da segurança, evitando que os arruaceiros causassem confusão e escândalo. Entretanto, no olhar do policial havia um brilho diferente, quando me encarou da janela do veículo.
Resolvi não dar atenção ao pressentimento e segui em frente, pulando pequenas poças de água que começavam a se formar, devido à chuva que começava a cair. A patrulhinha voltou, sirene ligada. O policial saltou do carro vindo na minha direção, me fazendo inúmeras perguntas, porque não estava com os outros torcedores, que tipo de cara sai sozinho de uma partida de futebol, onde geralmente se deixa o estádio na companhia dos amigos.
E por que motivo eu havia escolhido logo aquele trecho deserto, repleto de casarões para ir à rua principal – e não segui com a multidão. Tentei explicar como pude, mas meus argumentos não eram fortes o suficiente para convencer o guarda. Fui recolhido à delegacia.
Lá me reuniram a um grupo de homens barbudos, bem vestidos, pareciam crentes, usavam óculos, fumavam muito, enquanto aguardavam a vinda do delegado para uma conversa.
Não me irritei, porque logo notariam a confusão, eu era um torcedor perdido no meio daquela gente.
A autoridade chegou com cara de poucos amigos, "uns vagabundos comunas é o que são". Tentei protestar, mas levei um tabefe para me manter quieto, porque vadio socialista só falava quando ele mandasse. Engoli as ofensas em seco, procurei me controlar para não piorar a situação.
O delegado interrogou cada um dos homens na sala, quando na minha vez, ele interrompeu súbito minha fala, para declarar: "Este vai dizer que é torcedor do América". E era exatamente isso que eu alegaria. "Juro estava no jogo que aconteceu a pouco". "Minha Avó também". "Levem eles para a ducha". Fomos conduzidos para um vestiário, lá estavam enfileirados policiais com o rosto coberto, com toalhas molhadas enroladas nas mãos. "É hora do banho, vai ajudar a relaxar". Cada um de nós teve que passar por aquele corredor polonês, levando bordoada de tudo quanto é lado.
Depois de sovados, achincalhados e reduzidos em nossa dignidade, o delegado achou por bem dispensar a todos. Aquela violência policial me marcou bastante, me impressionou tanto que minhas pretensões mudaram. Se antes temia tê-las, acreditando no rumo certo do país nas mãos dos trogloditas fardados, agora via que estava errado. Quantos inocentes não deveriam ter sofrido as humilhações que eu sofri. Os que saíram vivos, poderiam se considerar com sorte, somente com a moral arranhada, podendo recomeçar.
E aqueles que não tiveram nenhuma chance? O pensamento me perturbava a mente. Na semana seguinte, recomecei o trabalho no banco sem o mesmo entusiasmo. Não é que eu fosse alguém expansivo, mas percebiam minha alteração de comportamento. Naquele dia no almoço, fui ao diretório do PCB me filiar ao partido, justificando não só a camisa vermelha do América, mas a outros ideais superiores como a liberdade de homem zanzar sem destino pelas ruas do seu país sem ser tomado por vadio ou por comunista por estar vestindo a camisa do seu time de coração.
Freqüentei reuniões clandestinas, participei de passeatas, tudo isso incógnito, porque se no banco soubessem que havia me tornado comunista estaria perdido, seria mandado embora no ato, porque a orientação era que fossemos apolíticos por ser esta a filosofia daquela instituição. Em uma das passeatas do partido pelas vias principais da cidade, vi aquela que futuramente seria a minha esposa.
Naquele momento até a guarda montada parou de distribuir pancada para vê-la atravessando a rua acintosamente vestida com um longo vestido vermelho.
Ela parecia distraída, não notava o tumulto e os cassetetes cortando o ar; o arfar dos cavalos conduzidos por cavaleiros ferozes que defendiam a pátria contra a escória em que havia se transformado a juventude.
Ela desfilava com a cor incomoda, sendo ovacionada pelos militantes que viam nesse gesto uma ousadia que nem os camaradas mais corajosos teriam. Era uma santa marxista, beatificada pelos operários, canonizada por Engels e Marx, dirigida em culto nas internacionais em que os teóricos desvencilhavam-se de suas táticas para pedir-lhe o milagre da revolução para a libertação da massa dos seus espoliadores.
Encontrei o meu amor de maneira inesperada, reuni coragem para admitir. Livrei-me do cartaz com palavras de ordem para segui-la na avenida; os guardas não percebiam minha ressurreição, tomando meu ato como afronta, descendo a borracha na minha cabeça.
Não dei mais um passo, caí. A minha sorte foi ter desmaiado em frente a mocinha vestida de vermelho. Pouco depois ao acordar, ela me confessou que o policial não sabia o que fazer, se lhe deixava cuidar do meu ferimento ou descia a bordoada nela, porque moça direita não se metia com tipos como aquele estendido ali. Para não sair sem as marcas de guerra, levou uma bordoadinha para ter lembranças do tempo de chumbo, com cicatriz e tudo. Talvez no futuro - pensávamos - isto renda uma indenização boa, ríamos. Daquele dia em diante não separavamo-nos. Mais tarde, depois de certo tempo de namoro, casamos. Tivemos uma filha. Hoje somos moradores do subúrbio da Zona da Leopoldina.

Comentários

Anônimo disse…
Que delícia ler esta história! Me reporta a um tempo conhecido-desconhecido!E um pavor de ter uma saudade deste lugar...não do chão...mas das pessoas.

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