Congresso de Lágrimas
O velhinho patriota do apartamento 305 estende a bandeira brasileira do lado de fora da janela. Todos os dias ao acordar, eu ouço todo o hino nacional, entoado com respeito e devoção, impressionado pela capacidade da memória do velhinho que não erra uma única frase, nem desafina.
Quando o encontro no elevador, ele me diz que na escola cantavam todos os dias, que sua afinação vinha desde garoto, que aquilo tinha se incorporado à sua vida, que a única vez em que ficou impedido de cantar o hino foi no exército, porque era corneteiro, mas quando estava no banho, praticava sem parar, fazia jogos mentais com as estrofes, avançava o ritmo ou mudava o andamento para mais lento, como um bolero. Dizia isso com uma expressão de felicidade nos olhos.
Do lado de fora do prédio, víamos a bandeira tremulando. Patrioticamente, ele juntava os calcanhares para ficar o mais ereto que conseguisse e fitava com os olhos o além, prestando continência aquele símbolo que amava mais que tudo.
- Quando minha mulher era viva não gostava que me dedicasse tanto à rotina de adorar a bandeira, pedia que eu virasse o disco, resolvi aprender os outros hinos e atacava o Hino à Bandeira – “Salve, lindo pendão da esperança/Salve, símbolo augusto da paz!”.
“Tio, me dá um trocado”, o menino puxa a manga da minha camisa, vasculho os bolsos, eu despejo na mãozinha estendida umas moedas. O velhinho do 305 sai do transe em que estava, praguejando o país, por estar infestado por esta corja, despejando todo o tipo de palavrão, me conduzindo para um barzinho logo do outro lado da rua.
“Não se pode facilitar com esses vagabundos”, resmungou. “Tenho saudade da vadiagem. Esses sacanas estariam tudo vendo o sol nascer quadrado”, emendou. Uma mulher com uma criança de colo se aproxima. “Moço, pode dar uma ajudinha”. Eu já não tenho mais dinheiro. “Vai arrumar uma roupa para lavar”, atacou o velhinho do 305.
Na minha cabeça o hino da bandeira “A grandeza da pátria nos traz”. A mulher vai para outra mesa, a criança enganchada no quadril: a mesma cantilena. Não tenho como deixá-lo falando sozinho, “Está quase na hora do meu trabalho”, interfiro. “Ah, meu rapaz, fique mais um pouco”, o velhinho do apartamento 305 gesticulava, apontando para um lado e para outro, como se estivesse a rever a marcha que tomou o Aterro, pedindo a caça as bruxas, com os olhos faiscando, os braços ressequidos riscando no ar os planos para se acabar de uma vez com a ameaça vermelha. Tudo isso dito com desdém, com menosprezo, indicando os caminhos dos generais.
Do outro lado da rua, um grupo de jovens negros amontoados, conversando alto, vestidos com bermudas e camisas de time, tocas enfiadas na cabeça, bandeiras enroladas em pedaços de pau. Uma imagem intranqüila.
“Arruaceiros!”, vociferou o velhinho do 305. “Se existisse a lei contra a vadiagem estavam em cana, no xilindró, que é o lugar de todos vocês, seus pés- rapados!”. O dono do barzinho não gostou nada.
Os jovens atravessaram para tomar satisfação, “Que porra é essa, vovô! Que porra é essa!”. Estavam exaltados. “O netinho vai tomar as dores do vovô, vai”, recebi a provocação. “Ele não é meu neto, não preciso dele para dar conta de vadios”. O velhinho parecia ter perdido a razão, subiu na mesa, apoiando-se em seu equilíbrio frágil, brandindo a bengala como uma espada. “Vocês vão tomar no cu!”. A briga estourou.
O bando de jovens invadiu o bar, quebrando cadeiras, roubando os fregueses, assaltando o caixa, dando porrada em todos pela frente. O velhinho, derrubado no chão, chutado por todos os lados, cantava o hino nacional, gritando com as forças que lhe sobravam. Esmurrado, com um dos olhos fechados, inchados, vi o momento que um dos rapazes arrastou o velhinho do apartamento 305 para o meio da rua, “Véio fiodaputa!”.
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