Perfis Brasileiros III

Dedicado a Salgueirinho

Dou o dinheiro. A cobradora não o confere. “Confio em você”. A linha liga dois bairros distantes, a viagem demora em média uma hora e quarenta e cinco minutos, não se pode esperar muito em uma cidade com tantos carros na rua, a paisagem desliza através da janela, a pobreza margeia toda a avenida principal, passam pelo acostamento homens com carrinhos repletos de tralha, mulheres de aspecto miserável com uma fileira de crianças esfarrapadas, carcaças de automóveis abandonados, na beira da pista cavalos soltos, complicando a vida dos motoristas que têm que prestar atenção tanto na via quanto no passeio irregular, dividido por animais e pessoas. O ônibus chacoalha bastante, o asfalto esburacado impede o avanço. Alguns passageiros jogados no ar por um solavanco mais forte reclamam, a cobradora lê uma revista de fofoca, aponta a plaqueta acima de sua cabeça com o telefone da prefeitura. O motorista endossa e emenda: dirigir nas estradas naquele estado era um crime, que deveria ter punição para a prefeitura por deixar as ruas desta forma, no fundo do ônibus se forma uma batucada, a algazarra se instala, brincadeiras explodem através das insinuações nas conversas, nisso já estamos a uma boa distância do centro da cidade, estou sentado no banco próximo à cobradora, me detenho algum tempo nas pernas grossas, unidas ao calcanhar esfolado pela sandália, nas unhas vermelhas, bem cuidadas e na tornozeleira com pingente de anjo, a cobradora percebe meu olhar, parece que quer conversa, quer arrumar um partido para o fim de semana, talvez uma cerveja, não tinha aliança, um bom sinal, mulher descomprometida, como não me decido a puxar assunto, a cobradora se antecipa, fala do calor, da longa viagem, quase não escuto, a cantoria nos fundos do ônibus não permite, o crente levanta-se e se encaminha para o tumulto na traseira do carro, quer conversar com os rapazes sobre a palavra de deus, no banco a direita dois homens falam sobre uma viagem para Geribá, combinam hospedagem na casa de um conhecido, o motorista conversa com o vendedor de doces., o ônibus sacoleja, a poeira sobe, a estrada é de barro, quando chove deus me livre, lamenta uma idosa que entrou há pouco, a cobradora lentamente examina meus olhos, minhas mãos secas, minha pochete, a investigação não a deixa com um bom pressentimento, os assaltos são freqüentes nesta linha, o trajeto corta uma série de favelas, os moleques estão cada vez mais abusados, antes havia respeito, agora, lamenta, mais é preciso continuar trabalhando, entra um passageiro, passa na roleta, é o sujeito que eu esperava embarcar, ele senta meio do carro, alguns rapazes do pagode descem, me levanto, a cobradora estranha, o crente começa a gritar palavras incompreensíveis, o espírito santo, a língua dos anjos, ele profetiza, talvez acerte, o futuro me incomoda, mas a encomenda estava ali, só era preciso me levantar, convencê-lo a descer e fazer o serviço, o crente me olhava, talvez adivinhasse, pressentia, abri a pochete, o crente se assustou, a gritaria, quase o ponto final, percebendo o que acontecia, a encomenda se jogou pela janela, para não perder tempo pedi para que o motorista parasse, desembarquei, as pessoas exaltadas, o crente parecia em transe, o olhar assustador colado em mim, longe o vulto da vítima, fechei a pochete, telefonei para o sujeito que havia encomendado o serviço, só restava voltar para casa e descansar, talvez fosse melhor escolher outra atividade, comprar um sítio, criar rãs, me aposentar.

Comentários

Anônimo disse…
legal, mariel. obrigado. sal.

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