Perfis Brasileiros II

João


João era visto dando intermináveis voltas no quarteirão. Não se cansava de realizar aquilo que chamava de o quadrado perfeito, confessava que aquele era o formato divino e não a circunferência como muitos já haviam defendido, que se ele se esquivasse de formá-lo toda vez, o mundo acabaria, porque esta a sua missão: manter as coisas nos lugares até que o Juízo viesse a ocorrer e todos os homens fossem julgados conforme a vontade do Criador. Dia e noite João não dava tréguas ao perímetro a ser coberto com seus passos; às vezes caminhava rápido, outras dava pulinhos como se jogasse uma amarelinha imaginária, corria como se participasse de uma maratona, ou simplesmente caminhava como se realizasse um exercício para a manutenção e bem-estar da saúde. Os lojistas não ligavam importância por vê-lo todo o dia passando em frente às vitrines, tiravam proveito desta situação, espalhando o boato de que se tratava de um vigia, afastando os maus elementos; os que ainda se espantavam eram alguns desavisados, mas logo compreendiam e tomavam por natural à tarefa de João. Neste dia em especial aconteceu um fato que modificou de uma vez a rotina dele, envolvido com sua missão de manter o equilíbrio do universo até a volta do Criador. Neste dia, ele, João, não sabia que se depararia com a grande parede azul do edifício pintado nos intervalos de suas passagens, notado como uma porta, acessando o caminho sagrado do qual queria fazer parte; faria de tudo para atravessá-lo. João começou a conversar com o suposto porteiro, guardião da entrada, diálogos incompreensíveis em que enumerava o tempo de serviço a formar o quadrilátero que pontuava o começo e o fim do universo, abria as mãos em gestos que significavam o segredo daquela forma, ignorado por milhares de anos por homens com inteligência privilegiada, explicando a ordem fundada dos adoradores do quadrilátero que se reuniam em edificações abandonadas no Centro da cidade; parecia tentar demover o guardião de sua inabalável resolução de deixá-lo do lado de fora quando o paraíso estava a um passo dele, que o guardião não teria o direito de agir assim, que se ele insistisse em não permiti-lo, acabaria por causar uma catástrofe, por que pararia de andar de um lado a outro do quadrado por tantos dias, colocando a continuação da vida humana em risco e responsabilizaria ao guardião por sua impertinência, por que não queria ficar lá por muito tempo, só queria espiar como era o outro lado, se haviam as cascatas, as árvores e os anjos, se o Criador andava realmente em uma lambreta como um transviado, se era possível ver ao mesmo tempo o sol nascendo em ambos os lados do planeta. João estava abatido, socava o muro de concreto pintado de azul, machucando as mãos, salpicando com sangue o límpido azulado do paredão. O desespero estampava-se em sua face, lançou um grito, fez com que todos parassem, prestando atenção na agonia com que implorava ao guarda imaginário para entrar. João não sabia mais para o que apelar, não sabia que argumento, motivo, afastava-se do muro como para encontrar maneiras de resistir à resolução que proibia a sua estadia, mesmo que por minutos, naquele reino tão almejado. Os passantes procuravam alertá-lo, estava próximo demais da rua, alguns carros já se desviavam, quando sentiu um baque no corpo, parecia que era erguido, olhou para o céu, sentiu ser puxado, alguém o erguia; João agora estava rodeado, um círculo de desconhecidos, o rosto do guardião revelava um sorriso : a boa notícia. Tinha certeza de que agora conseguira a autorização, que poderia entrar para dar uma espiadinha, que não tinha nada demais nisso, ele cumprira sua parte no acordo, formando o quadrado, todos os dias incansavelmente. João entrou correndo pelos jardins, sim, era isso, sim, o dia amanhecia, nos dois lados dos mundos.

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