Por Que Escrevo

Dedicado a Aurea
A curiosidade, primeiro principio da busca intelectual, não era o meu forte enquanto serralheiro, porque me encantavam aqueles adornos que encimam os portões. Uma preguiça retardava meus avanços e me arrastava para tarefas manuais, tendo sorte em algumas, cheguei a desenvolver a profissão de aprendiz do trabalho que me lembrava um pouco os enfeites das igrejas antigas do centro, uma espécie de rococó urbano. A leitura não era minha tarefa favorita. E também isso não fazia com que me destacasse na sala de aula ou fora dela; as meninas se sentiam atraídas pelos rapazes que se desenvolviam bem nas barras paralelas e no plinto (nome engraçado esse), enquanto que eu me danava em descobrir como chamar a atenção das pequenas com meu corpo franzino e pouco dado a exercícios ou esforços como o giro triplo na barra vertical. Esse nome pomposo era a maneira com que eram testados os candidatos a entrar numa turma do colégio, aquela patota que domina a área e se aproveita dos mais fracos, tornando-os escravos de suas leis, nem sempre justas, e de seus atos, nem sempre honestos. A minha reprovação por não conseguir realizar a tal pirueta do giro triplo na barra vertical me rendeu uma longa semana de vexame na escola, não havia aquele que não queria tirar um sarro com a minha cara. O negócio era me defender de outra maneira, me aconselhei.Pintou no colégio um concurso de poesia, imaginem só. As meninas suspiravam, tinham um caderno repleto de versos que trocavam entre si no horário do recreio, e aquilo me despertou para o que eu deveria fazer para conseguir recuperar minha auto-estima de volta. Só havia um único problema: eu nunca havia escrito uma única linha sequer e o raciocínio para todas aquelas imagens que um bom poema deve ter me parecia tão cansativo e entendiante que quase resolvi pedir uma nova audição com a tal turma para o teste do giro triplo na barra vertical. Era desencorajador ter que submeter primeiro o que eu escrevesse a uma professora para uma pré-seleção,mas a vontade de impressionar as mulheres era mais forte que meu senso de ridículo ou qualquer outro que eu possuísse, me apossei de um livro da lírica camoniana e mandei pau na leitura, quase decorando os esquemas de rimas do poeta lusitano, estudando em casa sobre rima pobre, rima rica, figuras de linguagem e figuras de pensamento, lendo manuais de redação, me preparando para uma guerra, porque isso era uma guerra, e em uma batalha quanto mais preparado está o soldado, menos chance ele tem de sucumbir em campo. Talvez eu não tenha pensado assim na época; meus amigos não me reconheciam, toda minha concentração estava em conseguir chamar atenção da minha professora de português, o que foi fácil. Comecei a sair daquela letargia mental que me caracterizava como um caso perdido para despontar como uma promessa se continuasse os meus estudos como estava procedendo. E uma espécie de fama aureolava minha fronte, tendo ao meu lado alguns dos melhores alunos do colégio, examinando de perto essa minha redenção, presenciando como minha mente se tornara ágil para as respostas e como eram espirituosos os meus ditos (eu tinha me tornado um engraçadinho).Só que tudo isso era meu exterior, lá dentro eu ainda pensava em capinar quintais, soldar ferros e me isolar o mais distante possível de toda a balbúrdia escolar, morar longe dessa cidade, dos edifícios e da violência, ao redor, e atrás das paredes desses edifícios.A nobreza em um homem sempre tem uma razão que não é vinculada a nenhuma virtude, mas a um desejo pessoal de realização. O meu desejo era impressionar uma menina em especial, talvez tenha começado e continuado a escrever para ela e mantido acesa a literatura para aquela primeira menina que me atravessou como uma flecha que rasgasse minha carne, me dissolvesse junto das partículas do ar e me devolvesse ao mundo repleto dela e do mundo, sob a fascinação de ter renascido. Pelo menos era assim que eu procurava sentir as coisas, que na época eram confusas como tudo na adolescência. Coloquei o ponto final em meu primeiro poema. Era madrugada (e isso não é efeito literário não, hein!) e depois de rasgar uma dezena de folhas, consegui obter um escrito que me parecera razoável e bastante bom para impressionar a professora que selecionaria os textos para participarem do concurso.Levei o texto no dia seguinte para a sala da coordenação e num envelope lacrado deixei minhas queixas amorosas -juvenis - para serem lidas por essa estranha que é a professora de português, que só se importava com os acentos nos lugares corretos, com as concordâncias, com o polimento das frases, as coordenações e subordinações - a professora de português não tinha o coração da poesia ardendo dentro do peito, pensava eu como pequeno petiz daquela escola, melodramatizando tudo, acentuando a cor das coisas, como se participasse daquelas antigas novelas radiofônicas, onde o exagero é importante para prender o espectador.
A notícia apareceu no mural no dia seguinte, lá a lista de classificados exposta, várias nomes desconhecidos, alunos de turnos diferentes se acotovelando para descobrir se constavam na relação e muitos já haviam desistido do otimismo, outros se entregavam a melancolia da derrota e os corpos quase formando uma barreira, impedindo meu avanço, até que alguém lá do miolo da multidão começou a chamar pelo nome as pessoas presentes na listagem como se fosse uma ordem de chamada. Descobri, entre surpreso e arrependido, o meu nome na listagem.Festejei timidamente e me recolhi para aguardar a vinda do festival (nome ingrato esse que ganhou o concurso de poesia) e a partir daquela semana recebemos um treinamento para declamar em público os poemas. Minha timidez nunca me permitiu grandes arroubos e a tarefa de declamar para uma pequena multidão aqueles versos, sem gaguejar ou suar frio estava fora do meu alcance.Pratiquei alguns dias com afinco. O espelho era minha platéia e me observava: me achava ridículo. A única coisa que me fazia prosseguir era a menina, sabia que ela estaria em algum lugar naquele amontoamento de gente, naquele monstro disforme que é uma multidão, monstro com um só corpo e mil cabeças. A menina me acenaria e tudo estaria resolvido, deixaria o palco, o poema declamado pela metade, a multidão enraivecida, a professora decepcionada, A POESIA enciumada e me entregaria a ela, aos seus braços longos e brancos, ao seu corpo azulado, intenso, repleto de pequenas veiazinhas que lhe cortavam a pele, como um pequeno animal marinho raro.Tudo isso se passava na minha imaginação. Tudo isso estava solto dentro de mim, tudo isso atravessava meu corpo me deixando sem fala, parecendo estar distante dos exercícios vocais para alcançar profundidade na declamação, acusado de distraído pela professora de música que tentava inculcar algum ritmo na leitura do meu texto, toda vez atravessado pela minha falha coordenação respiratória. O festival aconteceu num dia claro - para os outros, entenda-se.O colégio dividia-se em torcidas, parecia final de campeonato e não um evento em que se celebrava a sensibilidade e o bom gosto como os mais afrescalhados costumavam pontuar em suas conversas. Na ante-sala do auditório uma fila de projetos de poetas, todos com as pernas trêmulas, indecisos se era a coisa certa a fazer, levando consigo a esperança da vitória como a única coisa capaz de justificar a presença no evento.Uma vez ou outra, meus olhos se perdiam vasculhando as fileiras de cadeiras, procurando por ela. Não estava ainda por lá. Meus olhos patrulhavam a multidão como um farol que em noite de tempestade deseja se deter sobre uma embarcação que precisa ser resgatada - ou melhor- eu precisava de uma âncora, algo que fizesse permanecer ali, sem culpa ou tédio, sem medo ou nojo, conservando algum sentido nos meus atos. A vitória de um rival do turno da manhã não me abateu. Ela estava na primeira fila, percebendo o meu embaraço, as palavras balbuciadas, os gestos desencontrados, as pernas inquietas marcando um ritmo inexistente, as palavras cuspidas pela multidão que não me poupava, a tristeza da professora que tanto lutou pelo meu aperfeiçoamento vocal e de dicção. O único que me compreendia era Camões piscando um de seus olhos para mim.

Comentários

Elaine Pauvolid disse…
mariel, parabéns por mais esta.
também tenho um
www.jokasta.org
pretendo voltar.
inté
Anônimo disse…
Grande Mariel,
aplausos não tem como fazer aqui, mas sabe que merece, abração.
Anônimo disse…
antônio é o dutra, rs.
Mara Coradello disse…
Mudaria duas coisas neste texto que é um dos melhores seus que já li, e isso não é pouco não!Te falo por msn ou e-mail o que mudaria... Parece que está ouvindo de verdade o conselho de Fitzgerald. Ótima história, maravilhoso ritmo com respiração exata e com honestidade marcante e cativante. O concurso da Record e do SESC encerra dia 31 de outubro, ainda...Beijos!
poeta disse…
amigo, entre outros textos adorei, este, muito bom e criativo, fico feliz por saber que vc tem avançado na arte de escrever bem. Sucesso!
DENILSON MARQUES

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