Perfis Brasileiros
Estevão
Estevão é o homem encarregado dos corpos. Ninguém o procura, por medo, porque lida com mortos. Somente os parentes de desaparecidos são obrigados a lhe dirigir a palavra para encontrarem o cadáver na pilha de corpos dentro do frigorífico, quando não acham o que procuram, voltam desconsolados para casa, às vezes xingam, outras desmaiam quando deparam com o estado do corpo, alguns em estado avançado de apodrecimento. Nestas visitas, Estevão recebe todo o tipo de pessoa, inclusive aqueles que lhe subornam por um espaço mais confortável no freezer para o corpo do familiar, amigo ou parente, prometendo-lhe vantagens futuras, caso precisasse deste ou daquele serviço, entregando-lhe cartõezinhos com telefones. A maioria destas pessoas eram mulheres que viam em Estevão uma chance de se consolarem de suas perdas. Talvez viúvas como ele próprio costumava achar, que fragilizadas pretendiam chorar as mágoas no primeiro ombro que aparecesse, no par de ouvidos que cedesse atenção a enorme ladainha que se faz do defunto depois que ele está morto, testemunhando a contragosto os prazeres e desprazeres narrados por estas jovens, em sua maioria mães com três ou quatro filhos, caçando um novo pretendente, não importando aparência, somente a disponibilidade físico e financeira, para trocas rápidas de fluidos corporais e transferências bancárias. Estevão não se condoia. Mantinha-se do alto de sua posição como funcionário, não permitindo que tentações assim ultrapassassem o limite de flerte estabelecido por ele como aceitável, talvez uma cerveja no bar vizinho ao instituto, um pulo à casa da mulher para conversarem sobre qualquer assunto, e alguma ninharia amorosa, nada que pudesse ser usado contra ele em algum tribunal de pequenas causas e acarretasse depois em pedidos de pensão. Estevão se decidiu pelo que fazia bastante jovem, quando morava ao lado de uma rodovia bastante movimentada, em que sempre havia um atropelamento ou um acidente. Talvez se arrependa em ter causado alguns do muitos acidentes do trecho, mas precisava sobreviver na época e a única maneira era aquela depenar defunto. Ele tinha sociedade com Eduardo, este ficava com a cota maior do que fosse arranjado, porque era dono do carro, e corria riscos maiores, inclusive o da prisão. Estevão tinha o trabalho de sinalizar do alto de uma passarela quando sentia a aproximação de algum defunto potencial, porque a passarela ficava em frente a um banco e o golpe era aplicado na maioria das vezes no quinto dia útil do mês quando a maioria recebia salário. Ninguém entendia porque ele, Estevão, andava com aquela lanterna. O sinal era as duas vezes que Eduardo piscava o farol do carro, e Estevão respondia com o código correspondente. Tinham mais dois ou três homens que participavam do golpe, uma mulher que fingia ser parente do morto e até um policial da cabine do posto avançado. Quando o corpo estava caído no asfalto, apressavam-se em terminar logo o serviço, limpando tudo o que tinha de valor nos bolsos e pulsos e dedos. Talvez tenha escolhido a profissão pela facilidade que tinha para lidar com circunstâncias como esta, quando muitos de seus companheiros se acovardavam, lembrando que com defunto não se brinca, com medo da visita da alma de outro mundo, com cobranças além – vida. O próprio Eduardo quase enlouqueceu, salvo pela Igreja Messiânica do Aleluia, confessou tudo ao pastor, deu parte da quadrilha e passou três anos na tranca. Estevão quando conseguiu liberdade, voltou a estudar, dedicando-se a enfermagem, conseguindo a graduação técnica, passando no concurso do instituto. Hoje é casado, tem dois filhos, é católico praticante.
Estevão é o homem encarregado dos corpos. Ninguém o procura, por medo, porque lida com mortos. Somente os parentes de desaparecidos são obrigados a lhe dirigir a palavra para encontrarem o cadáver na pilha de corpos dentro do frigorífico, quando não acham o que procuram, voltam desconsolados para casa, às vezes xingam, outras desmaiam quando deparam com o estado do corpo, alguns em estado avançado de apodrecimento. Nestas visitas, Estevão recebe todo o tipo de pessoa, inclusive aqueles que lhe subornam por um espaço mais confortável no freezer para o corpo do familiar, amigo ou parente, prometendo-lhe vantagens futuras, caso precisasse deste ou daquele serviço, entregando-lhe cartõezinhos com telefones. A maioria destas pessoas eram mulheres que viam em Estevão uma chance de se consolarem de suas perdas. Talvez viúvas como ele próprio costumava achar, que fragilizadas pretendiam chorar as mágoas no primeiro ombro que aparecesse, no par de ouvidos que cedesse atenção a enorme ladainha que se faz do defunto depois que ele está morto, testemunhando a contragosto os prazeres e desprazeres narrados por estas jovens, em sua maioria mães com três ou quatro filhos, caçando um novo pretendente, não importando aparência, somente a disponibilidade físico e financeira, para trocas rápidas de fluidos corporais e transferências bancárias. Estevão não se condoia. Mantinha-se do alto de sua posição como funcionário, não permitindo que tentações assim ultrapassassem o limite de flerte estabelecido por ele como aceitável, talvez uma cerveja no bar vizinho ao instituto, um pulo à casa da mulher para conversarem sobre qualquer assunto, e alguma ninharia amorosa, nada que pudesse ser usado contra ele em algum tribunal de pequenas causas e acarretasse depois em pedidos de pensão. Estevão se decidiu pelo que fazia bastante jovem, quando morava ao lado de uma rodovia bastante movimentada, em que sempre havia um atropelamento ou um acidente. Talvez se arrependa em ter causado alguns do muitos acidentes do trecho, mas precisava sobreviver na época e a única maneira era aquela depenar defunto. Ele tinha sociedade com Eduardo, este ficava com a cota maior do que fosse arranjado, porque era dono do carro, e corria riscos maiores, inclusive o da prisão. Estevão tinha o trabalho de sinalizar do alto de uma passarela quando sentia a aproximação de algum defunto potencial, porque a passarela ficava em frente a um banco e o golpe era aplicado na maioria das vezes no quinto dia útil do mês quando a maioria recebia salário. Ninguém entendia porque ele, Estevão, andava com aquela lanterna. O sinal era as duas vezes que Eduardo piscava o farol do carro, e Estevão respondia com o código correspondente. Tinham mais dois ou três homens que participavam do golpe, uma mulher que fingia ser parente do morto e até um policial da cabine do posto avançado. Quando o corpo estava caído no asfalto, apressavam-se em terminar logo o serviço, limpando tudo o que tinha de valor nos bolsos e pulsos e dedos. Talvez tenha escolhido a profissão pela facilidade que tinha para lidar com circunstâncias como esta, quando muitos de seus companheiros se acovardavam, lembrando que com defunto não se brinca, com medo da visita da alma de outro mundo, com cobranças além – vida. O próprio Eduardo quase enlouqueceu, salvo pela Igreja Messiânica do Aleluia, confessou tudo ao pastor, deu parte da quadrilha e passou três anos na tranca. Estevão quando conseguiu liberdade, voltou a estudar, dedicando-se a enfermagem, conseguindo a graduação técnica, passando no concurso do instituto. Hoje é casado, tem dois filhos, é católico praticante.
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