Pequeno Poema em Prosa


1. A cabeça de um leão de pedra está em um dos muros do meu bairro. Impassível apesar da intempérie. A tinta branca com que está pintada têm rachaduras e os olhos miram o vazio durante o rugido. Fixada em um muro amarelo, sugere um iceberg que mantém congelado o corpo do animal.

2. A haste fina suspende o beija-flor diante de um girassol na varanda do prédio. Vistos à distância não parecem artificiais. As samambaias compõem um cenário majestoso para o pássaro de plástico enamorado pela flor. Ambos absorvidos pela eternidade do gesto do quase beijo.

3. O rendilhado de gesso da parte central do muro interrompido. Um senhor esclarece: vandalismo. Ele parecia uma bonita fita de presente rompida por uma criança afoita para espiar o pacote. Quantas vezes foi desfeito pelo olhar do velho antes de ser violado para sempre?

4. Ao longo da rua, no alto das casas, uma manada de elefantes miniaturizados saúdam com suas trombas suspensas o tráfego e as pessoas nas calçadas. Vigiam e testemunham tudo: a degradação do rio, a nossa corrupção. Às vezes, os traços do bronze competem em brilho com o sol.

5. Sentado sobre as patas em uma imobilidade absoluta, entre a creche e a academia, em um prédio interditado para reforma, a estátua do cão parece atenta às crianças devido ao risco do rio que divide a pista. É possível imaginá-lo em um gesto de pássaro atirando-se para salvá-las.

6.  As moscas zanzam em vão sobre a fruteira. A banana, a laranja ou a maçã indiferentes no cesto meditam outras coisas. Nenhuma mão ou boca, sujeira ou verme, aderirá a qualquer delas. Imóveis, sonham. Mortas. Fossilizadas em polímeros: recordam-se das árvores, as primeiras casas.

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