Outras Paisagens

Declaração de Anderson Fonseca, escritor e editor da Multifoco, à Marcelo Novaes (http://notaderodape-marcelo-novaes.blogspot.com/)


"MN: O escritor precisa ter o que dizer, ou basta saber dizer o já-sabido como "um jeitinho específico de pisar o chão-da-palavra"? Há que se ter voz e idéia pessoais, ou basta ter "sotaque" e alguns [charmosos] "cacoetes"?

AF: Como escreveu Walter Benjamin “Um bom escritor não diz mais do que pensa”, e sou da mesma opinião. Um escritor tem que ter sua voz, não sei dizer se a voz tem que ser descoberta, acho que ela tem que ser aprimorada, porque é óbvio que cada escritor tem a sua. E outro, para mim um excelente escritor é um inventor, e se ele é um inventor sabe que é preciso ser rebelde com as palavras. Não sou fã de escritor modista, adoro os que vão na contramão da linha férrea da literatura, ou seja, me apaixono pelo os escritores de invenção. Conheço poucos escritores de invenção os quais considero estarem buscando uma via alternativa à recém literatura portuguesa, por exemplo, cito Luis Serguilha, Camila Vardarac, Marcelo Ariel e Wilmar Silva na poesia; Mariel Reis e Whisner Fraga na prosa; não sou um bom crítico e, embora rígido com minhas escolhas, sei que há mais escritores e espero conhecê-los para não ser tão parcial em minha visão."


Por que levo a opinião dele tão à sério que resolvo publicá-la aqui? A resposta vai abaixo. Quem ainda tiver dúvidas de que se trata de um fino ficcionista, por favor trate de procurar um oculista. Ah, escreve no endereço:

http://escritosdo-exilio.blogspot.com/

12.5.10

Caro Sr. Anatore,
Perdoe-me por ter destruído sua vida, mas isto era inevitável, digo, por que é da minha natureza alcançar tal feito, infelizmente. Para que o senhor entenda o porquê desta carta e fique sem dúvida, vou direto explicar-lhe o que sou: um copista. Um copista é um ser mimético; não sou o que se pode dizer metamorfo, o contrário, sou apenas um observador da natureza humana a ponto de assumir suas características mais rudimentares tornando-me aquilo que desde meu nascimento procuro evitar: ser humano. No entanto, a natureza escolheu criar-me assim, com um propósito um tanto que maléfico, aniquilar vidas pela imitação; o que a mim é desagradável, a natureza é fundamental. Portanto, não julgue-me culpado, pois do mesmo modo que o senhor, padeço a vontade demiurgica da sorte. Eis aqui minhas desculpas. Não me julgo humano, sou o que pode ser humano, e entretanto, não é. Minha capacidade Sr. Anatore, é copiar sua vida minuciosamente, tornando-me tudo o que o senhor é, ah, como é terrível isto, mas não posso evitar, o que leva-me a fazer o que faço é a paixão que se desperta em mim ao ver uma pessoa feliz, satisfeita com a vida como você; mal o vi, e fiquei sobremodo apaixonado que dali em diante passei a ser você.
O senhor deve ter percebido isto, quando fora passear com seu cão pelas ruas do centro da cidade, e sentiu um calafrio tomar-lhe repentinamente o corpo ao ver um mendigo suplicar-lhe esmola. Tamanha era a felicidade em que o senhor estava, que menosprezou o pobrecoitado continuando o passeio com o cão. O senhor deve lembrar que assim que virou a esquina, no mesmo ângulo que desviou seu olhar, notou uma sombra ajuntar-se a sua tornando-a mais escura e seu andar mais lento e seu corpo mais pesado; apesar do que viu, decidiu novamente desconsiderar o evento, mas o senhor não se enganara de fato, a minha sombra ajuntou-se a sua e de resto já sabe o que se passou.
Sinto o terror apossar-se do seus olhos -, como isto me faz rir -, pois lembrara-se de tudo o que viveu nos últimos dias e agora entende porquê.
Sr. Anatore, como foi seus últimos dias, lembra-se? Permita-me contá-lo:
Após chegar em casa o senhor foi se deitar, estava cansado e ignorava o motivo, porque amanhecera tão disposto; o que o fez estar daquela forma? Uma febre surgiu no seu corpo e você teve um pesadelo: Sonhou a si mesmo comendo o próprio corpo; sabendo da fragilidade de seu organismo acordara vomitando o almoço. Ora, o senhor foi a um médico e este lhe disse não haver nada no seu corpo; estranhara, é claro, todavia como poderia contestar seu médico pessoal que o acompanha a anos? Havia um espelho no corredor da sala de consulta, e deve se lembrar, que assim que levantara para se despedir do médico, o senhor notou pelo canto do olho esquerdo uma leve alteração no seu reflexo, talvez um sorriso incômodo, porém não poderia afirmar o que viu. Logo ao virar o rosto, sorriu, ou engana-se? Contudo, sabia já não ser o mesmo, embora a incômoda sensação persistisse, tinha certeza de não ter poder para evitar a mudança. Abro aspas, “Sr. Anatore, é óbvio que ao ter sua sombra unida a minha, jamais o senhor permaneceria sendo o mesmo; dali em diante, a sua face converteu-se à minha, apesar de eu ter sua aparência”.
Nos próximos dias o senhor passou a cometer terríveis atos contra sua família; lembro ponto a ponto os acontecimentos:

2º Dia: O Sr. agrediu sua mulher desfigurando-a; embora lá dentro não desejasse bater nela, não conseguia evitar; sentia a mão ser guiada por uma estranha vontade.

3º Dia: O Sr. abandonou o escritório dizendo a seu sócio estar fatigado de trabalhar com um imbecil.

4º Dia: O cão que vivia a seu lado há dez anos, você o estrangulou; o Sr. lamentava, contudo, o espelho o mostrava sorrindo.

5º Dia: Toda a sua economia, guardada por anos, você queimou qual um louco faria.

6º Dia: Ninguém o reconhecia, pois tornara-se um mendigo.

Não será mais necessário lembrar-lhe do resto. Apesar de ter feito isto toda a vida, encontrando vários humanos e os destruídos, jamais encontrei um que me levasse a onde estou. Vivi a vida que desejei, afirmo, não, na verdade, a vida que a natureza me concedeu, todavia não imaginava que ela me levaria ao seu encontro para um propósito que ignorei. Vou lhe dizer claramente: Naquele dia em que você levantou-se para passear com seu cão, não foi o entusiasmo da manhã que surgia no céu que o motivou a isto; e também não foi uma decisão motivada pelo lazer, jamais; você sabia que estava doente e que nunca iria sarar, sabia, portanto, que lhe faltava dias para morrer, e ainda assim manteve a altivez como forma de enganar aos que o conhecem e não ser notado a sua aparência “de morte”, – preferível dizer “aparência mórbida”, ou, “pálida”?; embora, nenhuma seja apropriada, - e uma ideia falsa de felicidade que o confortou. Se não fosse este sentimento encontrado por você minutos antes de me olhar, eu teria percebido seu estado, mas por sorte, este pensamento turvou minha percepção.
Acabou enfim, que copiei sua doença, e agora estou prestes a morrer, a mesma hora em que você morre, Sr. Anatore.
Agora sabe o porquê.

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